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Antonio Fagundes:

Ator assume papel de produtor de cinema e diz correr um ‘risco monstruoso’

GUSTAVO PINHEIRO Especial para O GLOBO

Um senhor ligeiramente curvado, de olheiras profundas, cabelos desgrenhados, sandálias de couro e vestindo um triste conjunto de calça cáqui e camisa de manga curta de tricoline, cruza o movimentado Boulevard 28 de Setembro, no coração de Vila Isabel, Zona Norte do Rio, ao anoitecer. Os passantes nem se dão ao trabalho de virar o rosto para vê-lo. É assim, mimetizado entre os moradores do bairro, que Antonio Fagundes, um dos mais populares e queridos atores do Brasil, passa despercebido.

Fagundes deixa o estacionamento que serve de apoio à produção e caminha em direção ao açougue que dará abrigo ao cadáver de Nelson, seu personagem no longametragem “Maldito benefício”. Idoso de baixa renda e à beira da morte de tanto esperar um transplante, o aposentado recebe um comunicado da Previdência Social dizendo que ele tem direito a uma bolada que resolverá todos os seus problemas financeiros e da família. Mas... o problema é que o benefício será concedido apenas no seu aniversário, dali a sete meses. A partir daí, Nelson e sua família se envolvem numa rede de picaretagens para esconder a provável morte do beneficiário. O plano é simples: caso Nelson não resista, congela-se o corpo e descongela-se na hora de receber o maldito benefício, que dá título à obra.

Na filmagem das cenas que vararam a madrugada, acompanhadas com exclusividade por O GLOBO, Nunes (Luis Miranda) apresenta as “instalações” de seu açougue como quem vende um apartamento: ele recomenda o conforto da geladeira onde armazena as vitelas a Nelson e Teresa (Cris Vianna), até serem flagrados por Tião (Romulo Estrela), que não concorda com a estratégia mórbida para colocar a mão no dinheiro de seu pai.

Bem-humorada crítica à burocracia e à corrupção brasileiras, “Maldito benefício” conclui o ano de muitos trabalhos de Fagundes: gravação de dois audiobooks (“Sapiens” e “Se um viajante numa noite de inverno”), temporadas da peça “Baixa terapia” por dez cidades e a estreia de sua produtora independente de cinema, à frente da Fá Filmes, após cinco décadas de carreira bem-sucedida como ator.

São quase 50 anos produzindo teatro. Por que focar em produzir cinema agora?

Como ator, fiz mais de 50 longas-metragens, de diversos gêneros: pornochanchada, terror, filme político, comédia romântica, policial. Um dia me perguntei como se faz cinema no Brasil e descobri que é o mesmo processo com que as pessoas produzem teatro no Brasil: submetem o projeto ao órgão federal, esperam aprovação e, a partir daí, busca-se uma empresa que dê o dinheiro. Claro que o patrocínio é urgente e necessário, especialmente em um país que não tem política cultural de Estado, em que as diretrizes sobre a cultura variam de governo para governo. Mas esta é uma jornada que pode levar quatro, cinco, seis anos.

A ideia é produzir cinema como você produz teatro?

Via colegas esperando anos para montarem seus projetos de peças. Como evitar isso? Fiz dívidas (risos). Desde 1975 apostei nas minhas peças, consigo colocá-las no mercado de forma que se paguem e atendam as necessidades do público, sem baixar o meu nível artístico e cultural. Foi uma forma de ter liberdade de fazer meus projetos com rapidez. Acho que também dá para fazer cinema de uma forma diferente. Como? Arriscando, como faço no teatro.

Sua proposta é driblar a lentidão do Estado na produção de cinema?

O tempo é longo por causa da burocracia e porque nenhum patrocinador está fazendo fila para dar dinheiro. Às vezes sai um pedaço da verba, mas ela não é integral. Então arrisca-se começar um filme sem ter todo o dinheiro. Muitas vezes é preciso parar o filme no meio por um período. É uma espera terrível, mortificante.

Qual a estratégia de lançamento quando o filme estiver pronto?

Vou encarar os problemas que toda a indústria do cinema nacional enfrenta: distribuição e exibição.

Como enfrentar esses problemas?

Estas são as questões que deveríamos estar concentrados em resolver. São cerca de três mil salas de cinema em todo o país. Nos Estados Unidos são 50 mil. Os Estados Unidos produzem cerca de mil filmes por ano, no Brasil beiramos os 200. E mal conseguimos exibir os nossos filmes porque a produção estrangeira ocupa pelo menos dois terços das salas. No outro terço que sobra, a gente consegue colocar o nosso “filmezinho” por uma, duas semanas. Temos que ter uma cota de tela para garantir a exibição do cinema nacional. Mas isso não é suficiente.

Por quê?

Precisamos de mais salas, uma distribuição que não seja tão onerosa — o distribuidor, se não me engano, fica com 40% do faturamento do filme, mais 30% que vai para o exibidor. Dos 30% que sobram é preciso pagar todas as pessoas e as dívidas para fazer o filme! É um processo doloroso para o cineasta brasileiro. Todos passam por isso. Eu vou entrar nessa fila.

Como se subverte a lógica do mercado?

Não tenho a menor ideia! Estou correndo um risco monstruoso. (risos) Mas ao menos estou tentando trazer para o cinema um modelo onde o risco existe. Sei que há potencial de mercado internacional, de circular o filme em festivais importantes, isso chama a atenção dos distribuidores. E também tem o caminho dos streamings, da televisão, licenciar o filme por um valor e tempo que seja confortável para pagar as dívidas da produção.

O público menor do cinema pós-pandemia te assusta, agora como produtor independente?

É um problema que tínhamos que começar a pensar todos juntos. Mas não vejo muita perspectiva de acontecer. Ainda estamos angustiados com o fato de que não conseguimos fazer uma indústria cinematográfica potente no Brasil. O modo de produzir se resume a dois: com dinheiro ou sem dinheiro. Além disso, tem um fator que paramos de observar: o público.

Como assim?

É para eles que a gente se dirige. No teatro não é diferente. Presto muito atenção em quem vem me assistir no teatro, faço bate-papo com o público depois da peça porque quero ouvir essas pessoas, que tipo de pergunta elas fazem, porque daí posso saber o que elas estão entendendo do que quero que elas entendam. Tenho na cabeça, pelo menos, o que não devo apresentar ao espectador. O que devo apresentar, estou buscando sempre.

E você acha que isso também se aplica ao cinema?

A gente precisa fazer uma humilde paradinha e prestar atenção no público. Quem vai ao cinema no Brasil? Temos milhões de espectadores em potencial que pararam de ir, talvez porque não se reconheceram na tela, porque sentaram na sala e viram uma coisa que não entenderam, que não fazia parte do universo delas. Tem alguma coisa nos afastando do público. E por que estas mesmas pessoas continuam indo a shows, ao futebol? Porque se identificam.

Como você chegou a “Maldito benefício”?

Há anos busco roteiros em que eu possa assumir dívidas razoáveis e filmar. Soube que o (roteirista e diretor) Leonardo Cortez estava há nove anos tentando fazer o filme! Ele enfrentou o processo tradicional: levou pra produtoras, streaming, vendeu os direitos, não filmaram, quiseram mudar o roteiro, o título, uma série de coisas que interferiam no processo criativo. Então ele me deu o roteiro para ler e me apaixonei imediatamente. Falei: quero fazer isso aqui. Em dois meses já estávamos filmando.

O que te interessou em produzir e atuar no filme?

É um roteiro primoroso, todos os personagens são muito fortes, intensos, com aspectos sociais importantíssimos, mas com muito humor. Tenho certeza que o público vai dar grandes gargalhadas com o filme, que tem um elenco de primeira, em desempenhos fabulosos.

Quer produzir outros filmes?

Quero muito, mas a minha capacidade de endividamento tem limite. Quero observar o que acontece com esse filme, para entender o que fazer. Pode ser que eu tenha que mudar a minha forma de pensar. É um teste. Pelo menos vou tentar fazer uma coisa que ninguém tentou fazer ainda: apresentar ao mercado o filme pronto e não submetê-lo ainda em fase de projeto. É comum nos Estados Unidos fazerem o filme e venderem depois. Então é possível esse formato. Nós que não arriscamos ainda no Brasil. Eu vou arriscar.

Em 2018 você coproduziu e estrelou o suspense político “Contra a parede”. Como foi a experiência e o que tem de diferente do momento atual?

É tudo diferente. Quando fiz “Contra a parede”, estava sob contrato de exclusividade com uma empresa (TV

Globo), que logo se interessou em comprar o filme. Hoje, tenho liberdade para procurar não apenas a Globo mas qualquer outra empresa. Outro ponto: eu era totalmente virgem na produção de cinema. O Paulo (Pons) e a Daniela (Penteado) já tinham experiência, conheciam as pessoas, era meio caminho andado. Fizemos uma sociedade. Vejo que foi um experimento para chegar em “Maldito benefício” com a casca mais grossa. Só preciso que o mercado responda a essa iniciativa.

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