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Negros são 87% das vítimas de confrontos com a polícia no Rio

Pesquisa mostra que 87% das vítimas de confrontos com a polícia no Rio são negras

BRUNA MARTINS bruna.silva@oglobo.com.br

Pesquisa analisou dados dos mortos pela polícia em oito estados e concluiu que percentual de negros vitimados é amplamente majoritário em todos.

Odia ao lado do pai era para ter terminado com uma volta rápida de moto pela rua. Thiago Flausino, de 13 anos, só não podia se afastar muito de casa, na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio. No domingo, 7 de agosto, por volta da meia-noite, ele pegou a motocicleta do pai para um passeio e, no caminho, esbarrou com um amigo, que pediu para pilotar também. O trajeto não durou nem 40 minutos. Quatro policiais do Batalhão de Choque, em operação contra o tráfico de drogas, começaram uma perseguição contra eles. O amigo deixou a moto cair, os dois tombaram. Ele se levantou e saiu correndo, mas Thiago, ao tentar erguer a motocicleta, atraiu a atenção dos agentes, armados com fuzis. Antes de conseguir endireitá-la, levou três tiros. Priscila Menezes, sua mãe, lembra do lençol esticado sobre o corpo: “Não sei descrever o que eu senti, não conseguia entender o que estava acontecendo”.

O adolescente faz parte da estatística de morte por intervenção de agente do Estado, disponibilizada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) e base para a pesquisa “Pele Alvo: a bala não erra o negro”, que está sendo divulgada hoje pela Rede de Observatórios da Segurança e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec). Segundo o estudo, 86,98% das pessoas mortas por policiais em 2022, no Rio de Janeiro, eram negras.

O estudo analisa a letalidade policial nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, São Paulo e Rio de Janeiro, que ocupa o segundo lugar no ranking de pessoas mortas pela polícia no ano passado: 1.330. Em primeiro está a Bahia, com 1.465 vítimas. Entre as cidades com mais ações letais da polícia contra negros no estado estão a capital, São Gonçalo e Duque de Caxias.

FRAUDE PROCESSUAL

Jonas Pacheco, pesquisador do Cesec e da Rede de Observatórios da Segurança, explica que o número ilustra o racismo e a violência policial contra os negros, que são criminalizados e tratados de forma mais violenta.

— A gente precisa ter em mente que os negros não morrem mais só porque são maioria nos territórios onde as operações acontecem. A letalidade e a abordagem da polícia nas favelas não é a mesma em locais de classe média ou alta. Existe a escolha de ser ostensivo e violento nos lugares de maior vulnerabilidade social que, historicamente, são ocupados por pessoas negras —explica.

Para justificar a ação, os policiais explicaram que os jovens eram suspeitos —pilotavam a moto sem capacete e estariam armados. Durante a investigação da Corregedoria da Polícia Militar, descobriu-se que a cena do crime havia sido alterada, com a adição de uma pistola no local, a quem os agentes atribuíram a Thiago. Os agentes foram presos temporariamente e indiciados por fraude processual. Ainda não há denúncia sobre a morte do adolescente.

Thiago Flausino Menezes era o único menino entre três irmãs. Ele dormia todas as noites com a mãe, era aluno dedicado na escola e mais ainda no futebol. Jogava como atacante e sonhava chegar aos times profissionais. Vaidoso, deixava o cabelo crespo semanalmente “na régua”, como costumava brincar em casa. Fazia também as sobrancelhas, e andava sempre arrumado, “cheirosinho”, como recorda Priscila.

Os detalhes daquela madrugada também se fazem presentes em sua memória. Após o assassinato do filho, numa viela da Cidade de Deus, comunidade da Zona Oeste do Rio, ela precisou sair provisoriamente de casa.

—Falar sobre a execução do meu filho é sempre mexer na ferida. Eu sei que a luta não vai trazer ele de volta, mas é uma forma de honrá-lo, de manter a memória dele viva. E fazer justiça, punir os policiais que escolheram fazer isso contra ele —enfatiza Priscila.

A morte de Thiago reforça um desafio na amostragem dos dados da pesquisa. Jonas aponta uma limitação da titulação “morte por intervenção de agente do estado” que, pelo ISP, inclui apenas as pessoas mortas em confronto com a polícia.

NARRATIVAS FALSAS

Segundo Pacheco, essa leitura contribui para uma subnotificação dos números, já que não inclui todas as mortes cometidas pelos agentes, que se perdem em outras titulações, como a de homicídio doloso:

Outro problema, analisa ele, são as fraudes e justificativas das mortes, já que, em muitos casos, os agentes alteram a cena do crime ou apresentam narrativas falsas.

—Existe um duplo problema. Quando a gente lê o termo “morte por intervenção de agente do Estado”, acredita que inclui todas as mortes cometidas por policiais, mas não. É apenas uma parte delas. Essa titulação ainda ajuda a criar um escudo para os agentes, já que são protegidos pelo discurso da legítima defesa e, por isso, acabam não sendo denunciados ou investigados. Fora que nem sempre ela é verdadeira; em muitas situações, os policiais dizem que foram recebidos com balas e reagiram, mas não foi o que aconteceu. Ou dizem que o morto é suspeito, estava armado, e alteram as cenas dos crimes para ficarem impunes.

Matheus Gomes, filho de Sandra Gomes, foi morto no dia 7 de maio de 2021, durante uma operação no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio. Durante a manhã, ele saiu da casa da namorada para encontrar a mãe e ir ao médico, já que estava há uma semana com mal estar.

No caminho, ele ficou encurralado pela multidão que corria da polícia e acabou sendo alvejado. O corpo foi encontrado ao fim da ação, sentado em uma cadeira roxa. Naquele dia, 28 pessoas foram mortas, incluindo um policial: a operação mais letal já ocorrida no Rio. Devido à falta de provas e testemunhas, Sandra não conseguiu incriminar os agentes.

Ela, assim como outras mães vítimas da violência do Estado, busca maneiras de manter a memória do filho viva, além de chamar atenção para a forma ostensiva com que a polícia entra nas comunidades e mata, principalmente, jovens negros como seu filho.

—Eu até hoje me questiono se o Matheus não fosse um menino negro, ele teria sido executado daquela forma. Cada pessoa diz uma coisa sobre aquele dia, uns falam que ele estava de vigia, outros, que estava correndo, assustado, mas nada exclui a forma como ele foi morto. Se a cor da pele dele fosse outra, ele teria tido misericórdia? Teria tido uma segunda chance? — questiona Sandra.

RACISMO

A pesquisadora Juliana Vinuto, professora de Sociologia da Universidade Federal Fluminense, analisa que parte da violência policial contra os negros vem de um racismo apoiado pela própria população, que legitima a forma como as abordagens violentas são feitas, e, muitas vezes, comemora as mortes. Segundo ela, a ostensividade é uma escolha política, que traz poucos efeitos benéficos à sociedade.

—O “bandido bom é bandido morto” nunca é direcionado a um político ou empresário corrupto, é um ódio racialmente direcionado. O racismo que autoriza os policiais a entrarem em territórios empobrecidos e atiraram a esmo. Essa abordagem é uma escolha, e ela é diferente em cada lugar — explica. — A gente observa que em regiões de classe média ou alta, como condomínios, os agentes não fazem policiamento ostensivo, e sim de inteligência, investigação. Para eles, quem mora em favela é sempre suspeito; já se parte do pressuposto que é bandido ou conivente com a criminalidade do lugar.

“Falar sobre a execução do meu filho é sempre mexer na ferida. Eu sei que a luta não vai trazer ele de volta, mas é uma forma de honrá-lo”

_ Priscila Menezes, mãe de Thiago Flausino, morto na Cidade de Deus

“A letalidade e a abordagem da polícia nas favelas não é a mesma em locais de classe média ou alta. Existe a escolha de ser ostensivo e violento nos lugares de maior vulnerabilidade social”

_ Jonas Pacheco, pesquisador do Cesec e da Rede de Observatórios da Segurança

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2023-11-16T08:00:00.0000000Z

2023-11-16T08:00:00.0000000Z

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