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Ditaduras são sempre ditaduras

CORA RÓNAI

“Vou começar dizendo uma coisa: há tempos eu não sentia um alívio tão grande quanto no último domingo, quando a apuração virou. Naquele instante, o Brasil escapou de um regime totalitário do qual não conseguiríamos nos safar tão cedo caso o resultado das urnas tivesse sido diferente. Eu estava em Botafogo, na casa da minha irmã, e foi lindo ver todas as janelas ao redor em festa, gritando de pura felicidade.”

Este foi o parágrafo de abertura da minha coluna de 3 de novembro de 2022, a primeira depois do segundo turno. Aquela felicidade toda não vinha necessariamente por Lula, mas pelo Livramento. Havia sido exaustivo passar quatro anos sob o peso do rancor e do ressentimento, da perversidade, do golpismo latente, das mãos fazendo arminha, do desprezo pela ciência e por qualquer forma de gentileza, educação e diversidade.

Fui atrás desse texto nos arquivos do jornal porque pensei em começar a coluna de hoje descrevendo a imensa sensação de alívio que senti com a vitória de Lula —como um mantra a repetir de tempos em tempos. Acho importante não perder essa perspectiva,

LULA PAROU NO TEMPO; NÃO SÓ ELE, ALIÁS, MAS BOA PARTE DA ESQUERDA BRASILEIRA QUE NÃO CONSEGUIU ENTENDER QUE DITADURAS SERÃO SEMPRE DITADURAS

sobretudo quando Lula perde constantes oportunidades de se redimir com os 20,3% do eleitorado que sequer se deram ao trabalho de sair de casa no segundo turno.

Ele parece não perceber como a sua vitória foi apertada, e quem é o eleitor que precisa conquistar ao longo do seu mandato, meme por meme. Entre abstenções, brancos e nulos, 37,6 milhões de brasileiros jogaram a toalha em 2022 —e não adianta pensar neles apenas às vésperas da eleição.

Lula parou no tempo; não só ele, aliás, mas boa parte da esquerda brasileira, especialmente a da sua geração, que nunca conseguiu entender que ditaduras serão sempre ditaduras, independentemente de onde estejam, ou digam estar, no espectro político.

O seu fio condutor é o antiamericanismo fossilizado saído da Guerra Fria, que justifica tanto Putin, o homem soviético, quanto Maduro, o bad boy da América Latina, o rebelde anti-imperialista à moda de Fidel.

Reatar relações diplomáticas com a Venezuela faz sentido. Afinal, qual era o sentido de proibir a entrada de Maduro no país e aceitar lembrancinhas de Mohammed bin Salman?

Mas uma coisa é receber um coletivo de chefes de Estado, outra é fazer bilateral com ditador em meio a pompa, circunstância e afagos. Traduzir a violência institucionalizada, a sistemática supressão de direitos civis e os sete milhões de refugiados venezuelanos em “narrativa” é normalizar o opressor e insultar os oprimidos.

Talvez tenha sido um belo gesto para a base, que ainda usa camiseta do Che e tem busto de Lenin na estante, mas foi um tiro no pé num cenário internacional que tem a falta de democracia na Venezuela como fato.

Maduro saiu do Brasil legitimado e maior; Lula sai do episódio diminuído, e a troco de nada. Fica difícil se vender como Grande Pacificador evitando Zelensky e abraçando Maduro.

Enquanto isso a boiada passa, Marina encolhe, Sônia Guajajara também, as terras indígenas ficam ameaçadas, a Petrobras faz queda de braço com o Ibama —mas não há de ser nada, porque logo teremos carros populares para todo mundo.

(Ainda assim: ufa. Mas até quando?)

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2023-06-01T07:00:00.0000000Z

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