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ELLEN DE LIMA SOUZA E STELA GUEDES CAPUTO

Mono

João

Pedro Mattos, de 14 anos, brincava em sua casa, em São Gonçalo, quando foi assassinado, em 18 de maio de 2020, durante operação policial. No dia 21 de maio de 2023, três dias depois do terceiro ano da morte de João Pedro, Vinícius Júnior, de 22 anos, jogando pelo Real Madrid, em partida contra o Valencia no estádio de Mestalla, foi chamado de (macaco, em espanhol) repetidas vezes pela torcida. Logo depois, em 24 de maio de 2023, ocorreu a terceira audiência sobre o crime contra o menino João.

Os dois crimes de racismo precisam ser denunciados e punidos. Mas destacamos a grande diferença na forma como a sociedade brasileira lida com ambos. A audiência do caso de João foi quase obliterada. O racismo sofrido por Vini Jr., extremamente divulgado. Tanto Vini como João nasceram em São Gonçalo, cidade fluminense que leva o nome do santo português. Como todo brasileiro, cresceram cercados pelo cristianismo compulsório que nomeia a geografia do país ainda marcada pelas capitanias hereditárias.

O racismo contra Vini faz parte do histórico de racismo no futebol. Como jogador, o atual atacante do Real Madrid já era vítima de preconceito no Brasil, desde quando jogava pelo Flamengo. Ao ir para a Europa, passou a compor o grupo de atletas brasileiros vítimas do racismo naquele continente.

João Pedro também não é vítima isolada. Segundo dados do Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2020, 35 mil crianças, adolescentes e jovens de até 19 anos foram mortos de forma violenta. Uma média de 7 mil por ano. O mesmo levantamento informa que as mortes violentas têm alvo específico: mais de 90% das vítimas são meninos, e 80% são negros. João Pedro e Vini Jr. são vítimas da necropolítica, que, para o filósofo camaronês Achille Mbembe, nomeia um projeto de poder que define quem deve viver e quem deve morrer. Define também quem tem direito de ocupar lugares sociais como o topo do futebol. A necropolítica que definiu que João deveria ser uma das 7 mil crianças e adolescentes negros mortos em um ano é a mesma que diz que o lugar de Vini Jr. não é de realização, sucesso e alegria.

Em solidariedade ao jogador, no dia 22 de maio a iluminação do Cristo Redentor foi apagada entre 18h e 19h. Gesto necessário, emocionante e com repercussão internacional, especialmente num país cujo cristianismo é compulsório.

Se o mesmo gesto fosse praticado pela morte das 7 mil crianças e adolescentes negros assassinados em um ano, entre elas o menino João, o Cristo Redentor ficaria apagado por 700 noites, totalizando um ano, 11 meses e cinco dias. Que as lágrimas de Vini Jr. exponham ainda mais o racismo dentro e fora do futebol, mas exponham também que ele poderia ser João Pedro, e nenhum monumento se apagaria por um segundo sequer.

Que as lágrimas de Vini Jr. exponham ainda mais o racismo dentro e fora do futebol, mas exponham também que ele poderia ser o menino João Pedro

Ellen de Lima Souza é coordenadora do grupo de pesquisa Laroyê e professora da Unifesp, Stela Guedes Caputo é coordenadora do grupo de pesquisa Kékeré e professora da Uerj

Opinião

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2023-06-01T07:00:00.0000000Z

2023-06-01T07:00:00.0000000Z

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