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Marco temporal prova protagonismo do Parlamento

Aprovação na Câmara de lei que restringe demarcações é revés para Executivo e recado ao Judiciário

Aaprovação na Câmara da lei que restringe a demarcação de terras indígenas é mais que um revés para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi também um recado do Parlamento ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao país sobre seu papel na democracia brasileira.

O projeto ainda deverá passar pelo Senado, onde não será tratado com a mesma urgência com que foi na Câmara. Mesmo assim, a aprovação pelos deputados reflete um movimento parlamentar sólido contra a agenda do governo nos campos indígena e ambiental. Sua força se faz notar no esvaziamento das pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas e no encaminhamento de outras pautas correlatas.

No caso das demarcações, o projeto aprovado estabelece que povos indígenas terão direito apenas a terras ocupadas ou disputadas até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Com isso, desfaz a dúvida que paira sobre terras ocupadas depois, cuja demarcação é questionada no STF.

Ao afirmar que “são reconhecidos aos índios (…) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, o texto constitucional abre margem a duas interpretações. Na primeira, o verbo usado no presente — “ocupam” —se refere à data de promulgação da Constituição. Na segunda, o tempo verbal se refere à data da leitura do texto, qualquer que seja. Daí os recursos à Justiça, exigindo demarcação de terras ocupadas posteriormente.

Contrariando interpretações anteriores do próprio Supremo, o ministro Edson Fachin, relator de um caso de Santa Catarina que criará jurisprudência a todos os demais, contesta o marco temporal usado para demarcação. Diante da votação que poderia referendar a tese, marcada para a semana que vem, os deputados se anteciparam. “É inaceitável que ainda prevaleça a insegurança jurídica”, afirmou o relator do projeto, Arthur Maia (União-BA).

Se o Congresso decidir a questão estabelecendo explicitamente o marco temporal, hoje apenas implícito na Constituição, o STF terá obrigação de respeitá-lo. Mas isso não encerra a questão. O texto aprovado pelos deputados está repleto de lacunas, e outros itens ensejarão contestação judicial.

Primeiro, estabelecer o marco temporal porá em risco áreas ocupadas posteriormente à Constituição que já tenham sido demarcadas. Também interromperá vários processos de demarcação em andamento. Se a lei continuar omissa a respeito, caberá aos tribunais decidir o que fazer nesses casos. A insegurança jurídica persistirá.

Segundo, o texto afirma que o “usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”. Isso abre margem à construção de estradas, hidrelétricas e instalações militares sem consulta às comunidades afetadas. O mesmo dispositivo poderia, dizem ambientalistas, abrir brecha à exploração de minérios, num momento em que a prioridade na Amazônia é combater o garimpo ilegal. Tudo isso seria inaceitável.

Em que pesem tais ressalvas, o essencial na discussão é entender que a instituição mais representativa na democracia é o Parlamento. O Executivo é eleito para pôr em marcha seu programa dentro dos limites legais determinados pelo Congresso. E o Judiciário, nunca é demais repetir, não deve se meter a legislar como tem feito. A reação parlamentar, ainda que atabalhoada, é sinal do vigor que deve caracterizar os regimes democráticos.

Opinião Do Globo

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2023-06-01T07:00:00.0000000Z

2023-06-01T07:00:00.0000000Z

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