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PAIS E FILHOS

LEO AVERSA leo@leoaversa.com

Semanas atrás a notícia foi lida com surpresa: como assim roubaram? Quem fez isso? Por que no Parque Lage, aqui do lado de casa? Parecia mesmo algo incompreensível, ainda mais para os seus 13 anos: a preguiça é um bicho pacato e adorável, que não faz mal a ninguém. Quem seria tão ruim a ponto de roubar um filhote?

Não sei se o Martín estava mais incrédulo ou decepcionado. Contei que os ladrões doparam o bichinho, colocaram na mochila e queriam vender numa feira. Para lhe dar esperança no caminho, avisei que eles foram pegos pela polícia e que a preguiça foi devolvida à floresta. Mesmo com o final feliz, o episódio o deixou triste.

Ele olhava para mim como se eu, o pai, pudesse, de algum modo, desfazer o que havia acontecido e impedir a maldade de chegar perto dele, da sua casa. Como o super-herói que um dia ele achou que eu era, parar o tempo e mantê-lo para sempre a salvo das coisas ruins. É tudo o que queria, mas hoje sei que não é o certo: não estarei aqui para sempre e ele tem uma longa estrada pela frente. Precisa aprender, pouco a pouco, a seguir sozinho. Semanas atrás vi a pergunta no seu rosto: por quê?

É triste, mas a verdade é que o contato com o mal nos amadurece. Vamos perdendo a inocência, percebendo que não vivemos em um playground, que na vida real acontecem muitas coisas boas, mas também ruins. A infância, pouco a pouco, vai ficando para trás. Se, às vezes, o Martín quase parece um adulto destruindo vilões no videogame, respondendo atravessado ao que digo, outras vezes, ainda é um menino. Com a inocência que já está de saída, concluiu: —Esses ladrões não devem ter pais. ______

Anos atrás, por mais que eu explicasse de todas as maneiras, o meu pai não conseguia entender onde estava. Aos 84 sua memória já tinha ido quase toda embora, o que havia sobrado eram as lembranças mais remotas, as que ficam no fundo, as que importam. As que o Alzheimer não conseguiu de jeito nenhum destruir.

Ele não estava reconhecendo a cidade onde passou a infância. Não encontrava sua casa. Eu mostrava as ruas, pedia para ele olhar em volta, ligava a TV, apontava o jornal. Nada. Comecei a ficar nervoso, impaciente, não tive a sabedoria para perceber que o que eu mostrava não era o que ele tinha na memória, e não identificava a casa porque nela não estava a sua gente. As pessoas que amava não estavam mais lá. Vi a pergunta no seu rosto: por quê? Não tive a habilidade para explicar e ele foi ficando cada vez mais angustiado, sem compreender o que tinha acontecido. Com lágrimas nos olhos, perguntou:

—Se aqui é mesmo a minha casa, por que meus pais ainda não vieram me ver? ______

Às vezes quero me lembrar dos meus 13, às vezes tento imaginar os meus 84. Adivinhar as memórias que irão embora, as que ficarão. Quero saber onde estará a minha casa. Pode ser uma bobagem: talvez a nossa casa não fique num lugar, talvez fique em alguém. Talvez a explicação não esteja na geografia, mas no amor.

Espero que o filhote de preguiça recupere o seu lugar na floresta. Que no fim do caminho o meu pai tenha reencontrado, feliz, os meus avós. Que o tempo e a distância não façam o Martín esquecer onde é a sua casa.

TALVEZ A NOSSA CASA NÃO FIQUE NUM LUGAR, TALVEZ FIQUE EM ALGUÉM. TALVEZ A EXPLICAÇÃO NÃO ESTEJA NA GEOGRAFIA, MAS NO AMOR

Segundo Caderno

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2023-03-21T07:00:00.0000000Z

2023-03-21T07:00:00.0000000Z

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