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O relato do pianista brasileiro que se tornou o mais jovem aprovado no Conservatório de Moscou

PIANISTA MAIS JOVEM APROVADO NO CONSERVATÓRIO DE MOSCOU, BRASILEIRO REPASSA TRAJETÓRIA PONTUADA POR DIFICULDADES E FALA DE VIDA NA RÚSSIA EM MEIO À GUERRA

ESTEFAN IATCEKIW segundocaderno@oglobo.com.br Em depoimento a Gustavo Cunha

Ouço todos os sons ao meu redor — a buzina de um carro, a sirene de um bombeiro —como notas musicais. Na infância, sofria muito por causa do “ouvido absoluto” (a condição rara é chamada desta

forma). Com 2 aninhos, escutava música na televisão e batia nos armários no mesmo ritmo. Os sons eram estranhos, pois eu sentia que eles deveriam ter algum significado. Era uma angústia. Aos 5, cheguei para minha mãe e disse: “Por favor, compre um piano.” Não tínhamos condição financeira, e ela me deu um tecladinho. Ali, entendi que a música fazia parte de tudo o que conhecia e vivia.

Nesse período, já estava “tirando” várias músicas da TV no ouvido. Lembro de minha mãe dizer: “Esse menino tem algum problema.” Daí ela me colocou numa escolinha perto de casa, em Curitiba. Aos 9, conheci a professora russa Olga Kiun, que me mostrou todas as diretrizes do piano. Ela é formada pelo Conservatório de Moscou, e eu logo me encantei pela técnica de expressividade desenvolvida na Rússia. Quis seguir os passos dos grandes mestres da música clássica daquele país, para ter a mesma base de ensino de meus ídolos.

O estudo de piano, contudo, não é barato. Muitas vezes, filho de rico não é pianista. Mas filho de pobre resolve ser! Isso é complicado (risos). Desde o tal tecladinho, minha mãe fez tudo com sacrifício: para pagar minhas aulas, ela vendeu o próprio cabelo, roupas e todos os móveis de casa. Tudo isso porque acreditou no meu talento. Não tenho contato com o meu pai, e prefiro me manter longe hoje — sempre fomos eu, minha mãe e minha avó.

UM ANJO NA TERRA

Até que apareceu um senhor anônimo. Ele assistiu a um concerto que fiz, aos 10 anos, na Capela Santa Maria, espaço cultural em Curitiba. No dia seguinte, a secretária dele ligou para minha mãe e falou que eu havia mudado algo na vida de um grande empresário. E que ele não queria que faltasse nada para mim. Essa pessoa (que hoje sei quem é e não posso revelar o nome, por sua decisão) mudou minha vida.

Ele deu uma casa para mim e minha mãe. Pagou as minhas aulas. Era realmente um anjo na Terra, que infelizmente faleceu de Covid na pandemia. Devo meu futuro à família desse patrocinador, que ainda me ajuda a seguir com meu sonho.

Hoje, sou a prova viva de que a música clássica muda vidas. Tornei-me a pessoa mais jovem no mundo a ser aceita no Conservatório de Moscou —aos 15 anos —, na classe de bacharelado em piano. Aos 13, venci o Concurso Prelúdio, da TV Cultura, e conquistei uma bolsa para estudar no Conservatório Franz Liszt, na Hungria. Mas meu coração bateu mais forte pela Rússia.

Aos 14, ainda em Curitiba, fiz todos os três anos do ensino médio em apenas um. Ajudaram-me muito no colégio e me aplicaram provas do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e de universidades dificílimas para ver se eu estava apto. Só não gabaritei literatura — tirei 8,7 porque não tive tempo de ler todos os livros exigidos. No ano seguinte, fui direto para Moscou e fiz o teste para entrar no conservatório.

Eram 30 professores numa salinha minúscula, todos quase grudados no piano. Grandes nomes estavam na banca. Ninguém me cumprimentou, ninguém me aplaudiu. Sentime como uma carne podre no meio dos leões. Não sabia se meu nível se equiparava ao dos europeus. Ao fim, todos me aprovaram, e nenhum deles questionou minha idade. Foi uma coisa inédita, e precisei ir ao Departamento de Segurança da Rússia para resolver a parte da documentação.

TUDO EM RUSSO

Mudei-me de mala e cuia. Achei que a primeira aula do curso — que dura seis anos — seria em inglês. Que nada! Deparei-me com uma professora de História da Música falando tudo em russo. Aprendi na marra. Gravava as aulas escondido, e estudava o idioma durante as madrugadas. Em uma semana, passei a entender o que os professores diziam. Em um mês, já falava a língua. Recentemente, também aprendi mandarim (antes, falava inglês e alemão, além do português).

Não gosto de ter tempo ocioso. Sem estudar, fico desesperado. Uma vez, viajei com minha mãe por cinco dias... Que sofrimento, tu não fazes ideia! Minha cabeça vazia não funciona. No piano, são quase 12 horas por dia. O instrumento é uma extensão dos meus braços. Claro que minha vida é um pouco fora da curva. Mas sinto que sou inspiração para muita gente. Quantos talentos não podem sair de crianças que nem sequer conhecem a música clássica!? Quero estar dentro de todas as iniciativas para que a arte seja propagada.

Agora, estou me especializando na obra de Sergei Rachmaninoff, que viveu entre os séculos XIX e XX e também estudou no Conservatório de Moscou. Fui laureado no concurso que leva seu nome, e sou o único pianista brasileiro que tem todas as obras dele. Este ano lanço uma série de CDs interpretando suas composições (o primeiro, chamado “Destiny”, saiu semana passada).

A gravação dos discos aconteceria em Moscou, mas devido à guerra na Ucrânia foi feita no Brasil, no Teatro Positivo, em Curitiba, onde realizei um concerto na semana passada. Meu professor (o pianista Sergey Kuznetsov) deixou a Rússia por medo de ser convocado para o front. Passei a ter aulas com a mãe dele. Em Moscou, há muito policiamento nas ruas, e ninguém abre a boca para dar opinião sobre política. Não dá para confiar em ninguém.

‘LÁ, SOU TUPI-GUARANI’

E tem o fato de que a porcaria do meu sobrenome é da Ucrânia (meu pai tem ascendência ucraniana).

Na Rússia, para todos os efeitos, sou tupi-guarani. É isso o que digo quando me perguntam a origem de meu sobrenome. Ninguém pode pensar que sou de família ucraniana! A sorte é que todos os sobrenomes eslavos são muito misturados.

Devido à guerra, sempre vou para Moscou com passagem de volta. Nada funciona mais. A economia está muito prejudicada. Estrangeiros não conseguem sacar dinheiro nem usar cartão de crédito. Por isso, volto a cada três meses ao Brasil para me reabastecer. É tudo muito caro por lá. Carnes são extremamente escassas — já paguei R$ 300 num pedacinho de 400 gramas para fazer em casa. Comer em restaurante? Não dá. Eles só gostam de cogumelo, caviar... Não me adaptei. Por isso, levei panela de pressão, Nescau, maionese, chimarrão. Quando volto ao Brasil, só tenho vontade de comer arroz e feijão.

O povo russo é um pouquinho fechado. Em compensação, fiz amigos que levo para a vida. Não existe inveja ou concorrência. Todo mundo se ajuda. Quando falam que sou um prodígio na minha idade —estou com 19 anos —, não me incomodo. Pelo contrário! Sei que a vida de músico não é fácil. E acho que todo tipo de música tem que ser valorizado. Mas sou um pianista da antiga geração (risos). Só ouço mesmo música clássica. É algo que respiro 24 horas por dia.

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2023-03-21T07:00:00.0000000Z

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