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Pessoas com Down têm vida mais longa e autônoma

Com mais autonomia e saúde, nova geração desafia limitações do Down

GIULIA VIDALE giulia.ribeiro@sp.oglobo.com.br SÃO PAULO

Estudos mostram que avanços na medicina e a ampliação de políticas de inclusão elevaram de 12 para 60 anos a expectativa de vida de pessoas com síndrome de Down nas duas últimas gerações. Com a saúde, vieram também a autonomia e a possibilidade de realizar sonhos.

Maria Cristina de Orleans e Bragança, de 33 anos, tem origem real, síndrome de Down e uma vida comum, como a de outras pessoas de sua faixa etária. Filha do príncipe Dom João de Orleans e da arquiteta Stella Lutterbach, ela namora, cozinha, vai ao cinema, sai com os amigos, faz terapia e zumba, treina com um personal, tem aula de cerâmica e roteiro, sonha em se casar e ser diretora de novela. Seu perfil ilustra uma nova geração de pessoas com a alteração genética que chegam à idade adulta com saúde, bem-estar, autonomia, disposição e uma expectativa de vida cada vez maior.

Estudo publicado no periódico European Journal of Public Health mostrou que, nas duas últimas gerações, a expectativa de vida de pessoas com Down subiu de 12 para 60 anos, e espera-se que ela continue a aumentar. Os principais fatores que contribuíram para isso foram avanços na medicina, como métodos de diagnóstico de problemas cardíacos precoces e técnicas cirúrgicas; avanço no conhecimento sobre a condição; maior acesso aos serviços de saúde e a ampliação das políticas de inclusão.

— Hoje existem consensos mundiais da prática clínica voltada para crianças, adolescentes e adultos com síndrome de Down. Mas os avanços que mais mobilizaram a longevidade de pessoas com a síndrome foram as cirurgias cardíacas e o tratamento das infecções —diz o médico geneticista Juan Llerena, coordenador do Centro de Genética Médica do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).

A síndrome de Down é condição causada pela presença de três cromossomos 21 (em vez de dois). Isso ocorre na hora da concepção, de forma aleatória. O principal fator de risco é a idade da mãe. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a alteração está presente em aproximadamente um a cada mil nascimentos.

A trissomia do cromossomo 21 pode ser observada em características físicas, como olhos oblíquos, rosto arredondado, mãos menores. Ela também afeta o desenvolvimento cerebral —é considerada a principal condição genética que leva à incapacidade intelectual —, reduz a força e do tônus muscular (condição chamada hipotonia) e pode comprometer a visão, audição e coração. Metade das pessoas com Down têm problemas cardíacos.

Maria Cristina faz parte desse grupo. Ela nasceu com cardiopatia congênita, mas a condição demorou a ser diagnosticada. Felizmente,

Stella percebeu que havia algo de errado com a filha e não descansou até descobrir o que era. Aos 7 meses de idade, ela finalmente foi operada e ficou curada da malformação.

Hoje, um simples ecocardiograma do recém-nascido, por exemplo, permite identificar alterações cardíacas que necessitam de correções cirúrgicas precoces.

— O avanço da medicina permite que você trate e opere uma criança com problema no coração com muito mais chance de sobreviver. É um exemplo bem concreto que mudou a sobrevida da pessoa com síndrome de Down —avalia o pediatra e geneticista Salmo Raskin, colunista do GLOBO e diretor do laboratório Genetika.

Outra mudança recente na medicina é o diagnóstico da condição em si. Por muito tempo, a única forma de identificar a síndrome de Down era após o nascimento, com base nas características clínicas do bebê, seguida da confirmação por meio de um exame genético chamado cariótipo, que indica a alteração no par 21 de cromossomos.

Hoje, é possível identificar a síndrome no pré-natal. A detecção precoce pode ajudar tanto a família a se preparar e se adaptar às necessidades do bebê antes de seu nascimento, como proporcionar o acompanhamento e os cuidados específicos, que incluem, além de médicos especializados, fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional, entre outros.

—O tratamento multidisciplinar faz a diferença entre a vida e a morte ou entre viver pouco e viver muito e com qualidade —afirma Raskin.

ASPECTO SOCIAL

Apesar de todos os avanços da medicina, especialistas acreditam que a inclusão sociocultural é o fato que mais impactou a longevidade de pessoas com síndrome de Down. Antigamente, essa população ficava escondida em casa, sem perspectiva de ter uma vida autônoma, à margem da sociedade.

Desde o nascimento de Maria Cristina, Stella sabia que não era isso o que ela queria para a filha. A arquiteta sempre fez questão de apresentar a filha aos amigos, levá-la em comemorações e viagens em família e de colocá-la na escola regular.

—Eu acredito que a inclusão contribui com a melhoria da educação como um todo porque você convive com o desafio e com a diversidade. E eu queria que a Maria Cristina tivesse direito de fazer parte de sua geração e que ela convivesse com crianças diferentes dela —conta.

Maria Cristina foi alfabetizada, aprendeu a ler e escrever, publicou dois livros e, aos 20 anos, completou o ensino médio. Foi nesse período que ela se deparou com um cenário semelhante ao de muitos jovens com síndrome de Down: o que fazer em seguida?

— Nosso ensino tradicional não prepara para a vida. Precisamos rever conceitualmente o que queremos para aqueles que não têm condição de seguir a vida acadêmica e ir para a faculdade, por exemplo —pontua Llerena.

Após conversar com a mãe, Maria Cristina decidiu se dedicar à sua paixão por animais e trabalhar em um pet shop. Hoje se dedica a outras atividades:

—Estudo roteiro para trabalhar no meu novo projeto, uma novela chamada “Superstars”. Também faço aula de cerâmica e de culinária —conta.

Para o especialista, é preciso, desde cedo, ensinar habilidades que preparem pessoas com Down para o mundo, o que inclui desde o treinamento de ofícios como jardinagem, sapataria até ensinálos a lidar com o dinheiro, se vestir e realizar atividades cotidianas e cuidar de casa.

Também é importante que um indivíduo com síndrome de Down, em especial adolescentes e jovens adultos, encontre sua identidade.

—Se ele está em um meio que não tem outras pessoas com síndrome de Down, ele não encontra sua identidade, por mais empatias que existam nessa relação. Quando você coloca um adolescente nesse grupo, ele floresce —diz Llerena.

Pensando nisso, começam a surgir grupos de pessoas com síndrome de Down supervisionados por mentores ou tutores e até mesmo programas de moradias compartilhadas para pessoas com deficiência intelectual.

OUTRAS DEMANDAS

Além dos desafios inerentes à vida adulta, o aumento da expectativa de vida de pessoas com a condição traz novas necessidades de cuidados com a saúde. Por exemplo, aos 33 anos, Maria Cristina já apresenta sinais de menopausa. Isso ocorre porque pessoas com síndrome de Down têm envelhecimento precoce e mais cedo elas passam a ter doenças como diabetes, obesidade, depressão, ansiedade e até Alzheimer.

Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia e pelo Hospital Geral de Massachusetts constatou que a doença neurodegenerativa atinge 80% das pessoas com mais de 65 anos e com a alteração genética. Entre os indivíduos na mesma faixa etária sem a condição, a incidência é de 18%.

Novas descobertas trazem outras promessas. Recentemente, pesquisadores da Universidade de Lille, na França, e do Hospital da Universidade de Lausanne, na Suíça, descobriram que a reposição de um hormônio, o GnRH, melhorou o desempenho cognitivo e as conectividades cerebrais de pessoas com a síndrome.

“Os avanços que mais mobilizaram a longevidade de pessoas com a síndrome foram as cirurgias cardíacas e o tratamento de infecções”

Juan Llerena, geneticista

“A inclusão contribui com a melhoria da educação porque você convive com o desafio e com a diversidade”

Stella Lutterbach, arquiteta e mãe de Maria Cristina

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2023-03-21T07:00:00.0000000Z

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