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Anos quentes de hoje serão ‘frescos’ para nova geração, alerta ONU

Planeta não deve conseguir cumprir meta de frear em 1,5º o aquecimento no século XXI

Rafael.garcia@sp.globo.com.br SÃO PAULO

Relatório divulgado pelo painel de cientistas do clima da ONU (IPCC) mostra como os futuros habitantes do planeta serão castigados pelas alterações climáticas, diante da alta probabilidade de a meta de limitar o aquecimento global a 1,5° até 2100 não ser cumprida. Segundo o documento, os dias quentes de hoje serão “frescos” para as novas gerações. Para cumprir a meta, as emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa precisam cair pela metade até o fim desta década. Hoje, metade da população global vive em áreas vulneráveis às mudanças. “Nosso mundo precisa de ação climática em todas as frentes: tudo, em todo o lugar, ao mesmo tempo”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres.

RAFAEL GARCIA

Opainel de cientistas do clima da ONU (IPCC) divulgou ontem seu mais recente relatório, apontando que um ano considerado quente para a geração atual será equivalente a um ano “fresco” para as próximas gerações. O novo relatório-síntese, que resume as conclusões do sexto ciclo de avaliação promovido pelo grupo, afirma com destaque que “é provável” o planeta exceder a meta de aquecimento de no máximo 1,5° até 2100.

Essa opinião já era comum entre muitos pesquisadores da área, mas é a primeira vez no último ciclo de avaliações do IPCC, iniciado em 2018, em que o painel dá tanto destaque a essa projeção mais pessimista, ao levar em conta as emissões de gases-estufa produzidas até 2021.

A expressão “provável”, no linguajar do IPCC, tem um sentido técnico: uma probabilidade de dois terços (66%) de que um fenômeno ocorra. O limite de aquecimento de 1,5°C da Terra, calculado em relação aos níveis de temperatura da era pré-industrial anterior ao século XIX, é a escolha mais ambiciosa de meta do Acordo de Paris para o clima, inicialmente desenhado para segurar o aumento em 2°C.

“As mudanças observadas (1900-2020) e projetadas (2021-2100) na temperatura da superfície global (em relação a 1850-1900), que estão ligadas a mudanças nas condições e nos impactos climáticos, ilustram como o clima já mudou e mudará ao longo do vida útil de três gerações representativas (nascidos em 1950, 1980 e 2020)”, escrevem os cientistas no relatório. A informação é apresentada em um gráfico com imagens de idosos e bebês, para mostrar como as próximas gerações serão as mais castigadas. Segundo a ONU, metade da população global vive em áreas vulneráveis às mudanças climáticas.

FORA DA TRAJETÓRIA

Uma pressão para uma ação mais forte de redução das emissões aumentou nas negociações entre os países depois de o IPCC deixar claro que essa diferença de meio grau entre as metas de 1,5°C e 2°C é relevante para a escala de impactos da crise do clima.

O planeta, porém, está muito fora da trajetória de cumprimento dessa meta. Para isso, as emissões de CO2 e outros gases-estufa precisam cair pela metade até o fim desta década, mas até o ano passado ainda estavam aumentando. Em uma década, a produção desses poluentes aumentou mais de 12% e está hoje beirando a marca de 60 bilhões de toneladas de CO2 por ano.

O novo relatório do IPCC não traz informação técnica nova sobre a crise do clima, mas permite uma leitura melhor da “temperatura política” na relação entre cientistas e governos, a partir do conhecimento que escolhe destacar. O painel foi projetado para não ser um órgão capaz de prescrever políticas de ação, mas ao deixar mais clara a gravidade de situação, ele chega agora o mais próximo possível disso.

É até raro, por conta disso, que os cientistas mencionem muito as “contribuições nacionalmente determinadas” (NDCs), as promessas oficiais que os governos fazem de cortes de emissão.

“As emissões globais de gases-estufa implicadas pelas NDCs anunciadas até outubro de 2021 tornam provável que o aquecimento exceda 1,5°C durante o século XXI e tornam mais difícil limitar o aquecimento abaixo de 2°C”, destaca o texto do relatório, liderado pelo coreano Hoesung Lee. “Os fluxos financeiros ficam aquém do necessário para atingir as metas climáticas em todos os setores e regiões.”

‘BOMBA-RELÓGIO’

O secretário-geral da ONU, António Guterres, distribuiu um discurso gravado para comentar o novo relatório do painel, tratando a crise climática como uma “bomba-relógio”.

—Este relatório é um apelo para acelerar maciçamente os esforços climáticos de todos os países e setores, e em todos os prazos. Resumindo, nosso mundo precisa de ação climática em todas as frentes: tudo, em todo o lugar, ao mesmo tempo —disse o português, fazendo uma referência ao título do filme que ganhou o Oscar de 2023.

Guterres afirma que vai propor uma iniciativa especial ao G20, grupo dos países que constituem as 20 maiores economias do mundo: um plano especial para tentar alavancar medidas de mitigação, batizado de “Pacto de Solidariedade Climática”.

— Nesse plano, todos os grandes emissores fazem esforços extras para cortar emissões, e os países mais ricos mobilizam recursos financeiros e técnicos para apoiar economias emergentes em um esforço comum para manter vivo o objetivo de 1,5°C —afirma Guterres.

Apesar de tratar o estouro da meta como “provável”, o novo relatório do IPCC em nenhum momento trata como impossível que seja evitado.

—O que os modelos que foram tratados no sexto ciclo de avaliação do IPCC colocam é que, tecnicamente, essa possibilidade existe, afirma a ecóloga brasileira Mercedes Bustamante, professora da UnB, presidente da Capes e coautora do novo relatório-síntese do painel.

Ela reconhece, porém, que há muita preocupação na comunidade científica.

— O pessimismo está um pouco mais associado às barreiras que são necessárias romper para uma ação climática mais rápida e robusta de redução das emissões — afirma. — Mas mesmo que ela deixe de ser possível, cada elevação de temperatura conta muito, sobretudo no impacto aos mais vulneráveis. Estourar a meta em 1,6°C é melhor do que em 1,7°C, estourar 1,7°C é melhor que 1,8°C, e assim por diante.

O esforço da ONU para dar visibilidade ao relatório agora se deve, em parte, à agenda da conferência do clima deste ano, a COP28, que ocorrerá em Dubai, nos Emirados Árabes. O encontro prevê que os países signatários do Acordo de Paris produzam um “balanço global” para avaliar como a ambição do tratado evoluiu desde 2015, quando foi assinado.

RENOVAÇÃO DE PROMESSAS

Como o cenário não é bom, as Nações Unidas buscam incentivar que países procurem renovar neste ano suas promessas de corte de emissão futuras.

Para a analista política Stela Hershman, da coalizão de ONGs Observatório do Clima, o descompasso entre o que o IPCC produz e a ação de governos já está mostrando sinais de esgotamento da capacidade de cientistas de influenciarem as negociações.

— A ciência guia esse processo em relação às mudanças climáticas e deveria guiar mais. A gente deveria estar agindo com a velocidade que a ciência nos mostra que é preciso agir, e não estamos conseguindo fazer — diz. — Por mais que os cientistas se esgoelem e façam alertas vermelhos atrás de alertas vermelhos, o mundo não está avançando como deveria.

“Este relatório é um apelo para acelerar maciçamente os esforços climáticos de todos os países e setores, e em todos os prazos. Resumindo, nosso mundo precisa de ação climática em todas as frentes: tudo, em todo o lugar, ao mesmo tempo”

António Guterres, secretário-geral da ONU

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