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Percepção e arte em poucas linhas

Roberto Lent Neurocientista, professor emérito da UFRJ e pesquisador do Instituto D’Or

Pablo Picasso tem uma obra chamada “Le pingouin” (“O pinguim”) que representa essa curiosa ave polar com apenas uma linha dançante traçada no papel. Podemos acompanhar a linha com os olhos em suas convoluções, mas o que sobressai na primeira mirada panorâmica é a figura do pinguim que também vemos em fotos de jornal, quando algum atraca perdido nas praias brasileiras. À parte a incrível habilidade de Picasso, seguida pelos caricaturistas e cartunistas, é intrigante perguntarmos como nosso cérebro, do lado de cá, consegue reconhecer o rosto de um personagem famoso, um objeto conhecido ou uma cena histórica, à frente de tão poucas linhas traçadas. Trata-se de uma questão envolvendo a percepção visual, que apenas começa a ser solucionada pelos neurocientistas.

O reconhecimento visual de imagens do mundo externo se inicia na retina, é claro, e ascende ao córtex cerebral onde vai percorrendo sucessivas etapas de processamento, até bater com as imagens da memória que armazenamos durante a vida. Nas primeiras etapas, a visão segmenta as imagens em bordas, brilhos e cores, e posteriormente os reúne para guardar o conjunto na memória. Objetos, faces, cenários vão sendo conhecidos desde os primeiros meses de vida, e arquivados nas regiões cerebrais que ficam na altura das têmporas. Muitos experimentos foram feitos em seres humanos com técnicas de registro da atividade cerebral, capazes de reconstruir esse trajeto perceptual no cérebro. O caminho neural está mapeado, as regiões de armazenamento dos “arquivos ilustrados” também. Só falta saber o que exatamente é armazenado. Alguns elementos de cada objeto? Uma versão simplificada dele? Ou a figura completa com todos os seus detalhes?

A resposta chegou com um trabalho recente de pesquisadores alemães, que associaram imagens de ressonância magnética funcional (RMf) com registros de magneto encefalografia( MEG). A RMf permite conheceras regiões ativas em cada tarefa, mas não detalha adinâmica temporal do processo. AME G, por outro lado, não oferece detalhes anatômicos do cérebro, mas permite capturara atividade cerebral a cada milissegundo.

Os pesquisadores trabalharam com voluntários que concordaram em ter o seu cérebro duplamente escaneado durante tarefas de reconhecimento de objetos em três diferentes apresentações: fotografias realistas, desenhos detalhados, e desenhos esquemáticos, quase caricaturas. O Pinguim de Picasso, por exemplo, comparado ao animal desenhado por ilustradores técnicos e a fotos realistas de pinguins. Três categorias de representação. Os experimentos revelaram que as regiões de processamento visual complexo, as que comparam o que vemos com as imagens da memória, não guardam o objeto com todos os detalhes, mas sim a caricatura deles, a versão simplificada em linhas, cores e movimentos. Mais rapidez para reconhecer a imagem, mais eficiência no processamento perceptual.

Tudo bem, é assim que o cérebro reconstrói as cenas e objetos visuais por meio de poucas e simples características. Agora: como é que os pintores, desenhistas e caricaturistas conseguem “adivinhar” essa versão concisa que o cérebro guarda, representando-a em poucas linhas? Os artistas do Renascimento reproduziam os cenários e objetos com grande detalhe. A arte do século 19 simplificou o detalhe, a arte moderna reproduz apenas as características mais fundamentais que sintetizam o objeto, e a caricatura contemporânea é ainda mais radical: exagera algumas linhas para “colorir” afetivamente o objeto. É o mesmo que faz o cérebro. Sim, porque o esforço cognitivo seria grande e pouco eficiente se a cada vez que olhássemos para o Pinguim de Picasso tivéssemos que reconstruir os detalhes que tivemos que inspecionar alguma vez na vida para identificar que bicho era.

Será intuitivo? Um talento inato? Algo que se pode aprender? Assuntos quentes para uma nova linha de pesquisa. Percepção e arte em poucas linhas.

Objetos, faces, cenários vão sendo conhecidos desde os primeiros meses de vida, e arquivados nas regiões cerebrais na altura das têmporas

Saúde

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2023-01-27T08:00:00.0000000Z

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