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Impunidade marca os dez anos da tragédia na Boate Kiss

Familiares homenageiam as 242 vítimas em Santa Maria e protestam contra a anulação do júri que condenou os réus

ELISA MARTINS elisa.martins@oglobo.com.br SÃO PAULO

As colagens de frases e fotos da Praça Saldanha Marinho até o prédio onde funcionava a boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, lembram as ausências que ecoam há dez anos no dia a dia das famílias que perderam filhos e amigos na tragédia. No dia em que o caso completa uma década, pais, mães e familiares fazem homenagens e vigílias no caminho que leva à discoteca cujo incêndio iniciado pelo uso de fogos de artifício em um show na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 ceifou a vida de 242 jovens e deixou mais de 630 pessoas feridas.

Parentes e sobreviventes se esforçam para manter a memória viva, enquanto também protestam contra a impunidade no processo que tramita na Justiça.

Em dezembro de 2021, um júri decidiu pela condenação dos quatro réus —dois proprietários da boate Kiss e dois integrantes da banda que fazia o show com fogos de artifício. Mas em agosto do ano passado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul atendeu às defesas e anulou a decisão, para revolta das famílias.

— O sentimento mais forte é de indignação. Impotência. Humilhação. Quem acompanhou o processo sabe que o que aconteceu foi causado por pessoas irresponsáveis que assumiram o risco inúmeras vezes — diz Paulo Carvalho, da diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e pai do jovem Rafael, que estava na boate.

“OMISSÃO E GANÂNCIA”

Dez anos depois da tragédia — que chama de “crime” causado por “omissão e ganância” ou “tragédia anunciada” —Carvalho diz que as famílias que se reencontram hoje nas ruas de Santa Maria não querem só resgatar o passado, mas prevenir casos similares no futuro:

— Há algumas pessoas que nos criticam, dizendo que queremos vingança, que deveríamos esquecer, deixar em paz. Mal sabem que a luta não é pelos nossos filhos. Eles não voltam. É para que não seja em vão. Para que não se repita. Para que haja punição, porque a punição traz receio e, com isso, conscientização.

Ao lado de cultos ecumênicos e homenagens, além da exibição do primeiro episódio do documentário do Globoplay “Boate Kiss — A tragédia de Santa Maria”, entidades locais prepararam diversos painéis de discussão. Entre eles, um intitulado “Por que a prevenção vale a pena?”, com especialistas em segurança e proteção contra incêndios.

“TRAUMA COLETIVO”

No caso da boate, fatores como a falta de sinalização de emergência, a obstrução da saída e falhas em extintores de incêndio são apontados como erros cruciais.

— É um trauma coletivo — disse a psicóloga Vanessa Solis Pereira, do Eixo Kiss. — É nossa marca, nossa ferida. Precisamos assumir isso para seguir em frente. E juntos.

Ao longo dos anos, o processo teve uma série de adiamentos e apelações que adiaram o julgamento. Em 2017, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul chegou a decidir que não levaria os réus a júri popular —a decisão só foi revertida em junho de 2019 pelo Superior Tribunal de Justiça.

O julgamento chegou a ser marcado para março de 2020. Mas veio a pandemia. A definição da data só voltou a ser discutida em julho de 2021. Depois, o local foi transferido de Santa Maria para o Foro Central de Porto Alegre, o que também desagradou familiares de vítimas.

A análise do caso começou em dezembro do mesmo ano. Depois de dez dias, o júri decidiu pela condenação com penas de 18 a 22 anos de prisão. No início de agosto, porém, veio o que familiares chamaram de “o dia em que a Justiça sucumbiu no Rio Grande do Sul”.

— O Tribunal de Justiça julgou os recursos e por dois a um os desembargadores entenderam que algumas situações haviam gerado prejuízo ao processo, e o júri foi anulado — lembra Pedro Barcellos, advogado da AVTSM.

A associação e o Ministério Público entraram com recursos especiais e extraordinários no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

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2023-01-27T08:00:00.0000000Z

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