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Genocídio de indígenas é projeto desde 1500

FLÁVIA OLIVEIRA

OBrasil adormeceu no último sábado assombrado com uma brutalidade recorrente, ora transmitida em rede nacional. A tragédia dos ianomâmis de Roraima, remanescentes dos mil povos indígenas que habitavam Pindorama até a chegada dos invasores portugueses, nunca cessou. Em 1500, pesquisadores estimam que o território abrigava pelo menos 3 milhões de habitantes nativos; dois terços viviam no litoral. Em século e meio foram reduzidos a não mais de 700 mil. Por homicídio ou aculturação forçada, foram dizimados. Sempre foi genocídio.

— Por meio direto ou por dissolução na ideia de população brasileira, o projeto sempre foi genocida — diz a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora na Universidade de Brasília (UnB), recém-indicada diretora-geral do Arquivo Nacional.

Em 1970, quando publicou “Os índios e a civilização”, resultado de mais de uma década de pesquisas, o antropólogo Darcy Ribeiro, grande intelectual e político brasileiro que completaria 100 anos em 2022, já denunciava o desaparecimento de 88 de 230 etnias encontradas na virada do século passado. Somente em 1991, o IBGE incluiu os indígenas no Censo Demográfico. Desde então, a participação dos nativos na população total, impulsionada pela autodeclaração e pelo reconhecimento de direitos fundamentais, saiu de 0,2% para 1,6%. Em 2010, o Brasil tinha 896.917 indígenas, dos quais 572.083 em área rural — os dados do Censo 2022 ainda não estão disponíveis.

Brasileiras e brasileiros podemos — e devemos —nos horrorizar com a barbárie perpetrada contra os povos originários, de modo geral, e contra os ianomâmis, em particular. Só não têm direito à surpresa. O país é cruel desde sempre; e a brutalidade se intensificou nos quatro anos de Jair Bolsonaro no Planalto. O presidente neobandeirante nem quando deputado federal escondeu a vocação para Borba Gato. Apoiador da corrida do ouro contemporânea, sempre defendeu o garimpo e desprezou territórios e povos indígenas. Ainda assim, foi eleito com 57,7 milhões de votos em 2018 e, quatro anos depois, derrotado na campanha à reeleição com votação ainda maior (58,2 milhões).

As imagens de adultos e crianças —passado e futuro, portanto —famélicos, doentes, humilhados são de partir o coração, de envergonhar a nação. Os indígenas foram abandonados à própria sorte para definhar e morrer pela supressão de alimentos, pela contaminação da água, pela falta de medicamentos, pelo estímulo ao alcoolismo, pelas agressões físicas, pela violência sexual contra meninas no limiar da puberdade.

Em quatro anos, 570 ianomâmis com menos de 5 anos de idade perderam a vida. Nos últimos dias, mil indígenas foram resgatados, cinco dezenas de crianças internadas com desnutrição e outras doenças tratáveis.

Relatório de abril de 2022 do Instituto Socioambiental traz relatos desoladores. Em três meses, Funai, Exército e autoridades do governo Bolsonaro receberam uma dúzia de ofícios denunciando a tragédia. Em nota no início da semana, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF) elencou medidas judiciais e extrajudiciais tomadas nos últimos tempos para socorrer os ianomâmis. Em novembro passado, os procuradores relataram ao então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e ao secretário especial de Saúde Indígena, coronel Reginaldo Ramos Machado, irregularidades e deficiências no atendimento, incluindo falta de remédios; sugeriram contratação de profissionais; alertaram sobre a alta incidência de malária, mortalidade e desnutrição infantil. Na Justiça, foram três ações solicitando instalação de bases de proteção etnoambiental; plano emergencial de enfrentamento à Covid-19; combate a ilícitos ambientais e expulsão de garimpeiros.

Antes disso, em agosto de 2021, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já tinha encaminhado ao Tribunal Penal Internacional denúncia de genocídio e crime contra a humanidade por extermínio, perseguição, desmonte das instituições de proteção e atos desumanos. A entidade voltou à Corte de Haia em meados do ano passado para acusar o então presidente e o governo de morosidade nas investigações sobre os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips na Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas. Nesta semana, a Polícia Federal apontou o traficante Rubens Villar, o Colômbia, como mandante do crime. A Univale, que representa os indígenas da região, cobra a continuidade das investigações para debelar o crime organizado e identificar a conivência de políticos locais.

No Sul da Bahia, dois jovens pataxós foram mortos a tiros por disputa fundiária, dias depois da posse de Sonia Guajajara no inédito Ministério dos Povos Indígenas. O Brasil é um dos países que mais matam defensores de direitos humanos no planeta, indígenas e quilombolas entre eles. Anteontem, a deputada federal eleita Célia Xakriabá marchou em Brumadinho (MG) com indígenas afetados pelo rompimento de uma barragem de resíduos da Vale, que deixou 270 mortos em janeiro de 2019. A mineradora, uma prestadora de serviços, a Tüv Süd, e 16 executivos tornaram-se réus somente nesta semana.

O rol de violações contra povos indígenas no Brasil começou em 1500 e não terminou. O Estado deve reconhecimento e reparação aos donos da terra; a sociedade, um pedido sincero de desculpas; o Judiciário, a condenação dos genocidas do século XXI, do Planalto à planície, do topo à base, de cabo a rabo.

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2023-01-27T08:00:00.0000000Z

2023-01-27T08:00:00.0000000Z

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