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O ÚLTIMO COMBOIO

ANA PAULA LISBOA segundocaderno@oglobo.com.br

Era preciso primeiro entender que bairro era zona, cidade era a Baixa, área era comuna, favela era bairro, que também podia ser guetho. Guetho assim, escrito em inglês. —Você mora em qual bairro?

— Eu não vivo no bairro, eu vivo na cidade! Não sei se faço-me perceber.

Afinal fazia sentido, porque viver e morar são verbos parecidos, mas viver requer uma continuidade e pertencimento que morar não requer. Eu, por exemplo, morei mais de uma década no Engenho Novo e vivi cinco anos na Maré.

Por aqui, a mobilidade de moradia é pouca, quem vive no bairro vive no bairro. Quem vive na cidade oscila às vezes pela Marginal, Maianga, Alvalade, o que quer dizer que mora praticamente no mesmo lugar.

Não sei se faço-me perceber.

Lá para aquelas bandas, lá em cima. Pra entender esta coluna você precisa entender que táxi era van, van era Hiace. Ônibus é autocarro, multidão é enchente e trem é comboio. O comboio leva a outros municípios, dentro e fora da cidade, mas há sempre quem prefira andar a pé.

Acho que foi Alice da Cruz que me apresentou “Comboio”, não o meio de transporte, mas a música. Ela chamou de Hino Nacional. Foi exatamente assim que encarei, estando diante de um clássico que (quase) qualquer angolano poderia cantar com a mão direita no coração. Eu poderia comparar a cantar o “Rap da felicidade” para um carioca favelado, ou “Baile de favela” para os mais jovens. E, sim, é impossível não fazer uma comparação com o funk em tantos pontos que não caberiam aqui.

Angola é um país tão jovem que me assusta às vezes, tão jovem que meus amigos viram o kuduro nascer, tão jovem que o maior ídolo do estilo morreu na semana passada, aos 36 anos. Tão jovem que as maiores preocupações eram a viúva, a quantidade de pessoas que iriam ao óbito e se ele era realmente importante para o país ou não. Talvez tivéssemos as mesmas preocupações se Erasmo morresse aos 36 e não aos 81.

Eu digo que envelhecer é importante, mas digo só talvez porque não é só sobre o tempo, é sobre o olhar. É sobre olhar para um jovem negro, franzino,deolhosgrandes,cabelodescoloridoe que se autodenomina “o demônio do Sambizanga” e ver nele alguém importante. É sobre achar o próprio Sambizanga importante.

Pois bem, o bairro saiu para a via e não era carnaval. Nagrelha teve o maior funeral da história do país, fez do estádio da Cidadela e da Avenida Deolinda Rodrigues uma enchente. Certamente não teriam melhor rua a ser fechada para homenagear um herói nacional. Se és leitor desta coluna, saberás perceber o motivo.

Quis pegar este último comboio, mas infelizmente não foi possível. Minha amiga disse que foi Deus que me impediu, é certo que uma pessoa morreu e mais de 30 ficaram feridas.

Mas, com todo o respeito às pessoas, tudo fica tão pequeno diante do Estado-Maior do Kuduro, diante da grandeza de ver a história contemporânea africana com estes olhos que a terra há de comer.

É lindo saudar o passado, pensar em 500 anos de história e resgatar tudo que me foi negado. Mas, sabem, que honra viver no mesmo tempo de quem, pela sua importância e grandeza, se torna um ancestral

ANGOLA É UM PAÍS TÃO JOVEM QUE MEUS AMIGOS VIRAM O KUDURO NASCER, TÃO JOVEM QUE O MAIOR ÍDOLO DO ESTILO MORREU NA SEMANA PASSADA, AOS 36 ANOS

Segundo Caderno

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2022-11-30T08:00:00.0000000Z

2022-11-30T08:00:00.0000000Z

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