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NA TELA, CANIBAIS ENTRE O TERROR EODRAMA

CARLOS HELÍ DE ALMEIDA Especial para O GLOBO

Acamiseta vintage com a estampa de “Absolute beginners”, um dos hinos dos anos 1980 eternizado na voz de David Bowie, com a qual chega para a entrevista, é para não deixa dúvidas: Timothée Chalamet tem espírito de roqueiro. A peça é até muito discreta se comparada aos modelos com que o ator de 26 anos costuma presentear seus fãs em aparições públicas, como releituras de saias e blusas frente-única. Um toque de transgressão que ele levou para a caracterização de seu personagem em “Até os ossos”, de Luca Guadagnino, que estreia amanhã nos cinemas brasileiros, depois de ganhar os prêmios de melhor direção e intérprete revelação (Taylor Russell) no Festival de Veneza, em setembro.

No novo trabalho do autor de “Me chame pelo seu nome” (2017), vencedor do Oscar de melhor roteiro e filme que o catapultou para o estrelato, Chalamet perambula pelo Meio-Oeste americano vestindo calças jeans rasgadas e ostentando mechas de cabelo tingidas de cor-de-rosa. Mas o visual punk de seu personagem é o elemento menos transgressor desse drama ambientado nos anos 1980, sobre autodescoberta e tipos marginalizados pela sociedade, com fortes pinceladas de terror. Adaptação do romance homônimo de Camille DeAngelis, “Até os ossos” acompanha a jornada de dois jovens que compartilham a compulsão de se alimentar de carne humana e se apaixonam enquanto buscam respostas para seus dilemas.

‘NÃO É SANGUINOLENTO’

Sim, é uma história de amor entre jovens canibais angustiados, que tentam encontrar um lugar no mundo que rejeita tudo o que não é padrão.

— Há elementos de terror, mas não é sanguinolento como as tramas do gênero. Na verdade, é um filme sobre ser outro, o diferente, e como esse outro procuras e encaixar socialmente. É também sobre aquela coisa maravilhosa que acontece na primeira vez que vocês e apaixona, encontra alguém por quem valha apena lutar. Como a própria Taylor me disse, certa vez: “O amor pode ser o maior ator de proteção da solidão do outro” —disse Chalamet em um bar do hotel Cipriani, em Veneza. — Nos filmes de Hollywood, o amor supostamente arde em vermelho, em chamas. Nesse filme, os amantes se ajudam nos desafios, têm motivações sinceras. O sangue não está ali pelo valor do choque, apenas.

O ator reconhece que o filme

é de Taylor Russell, a Judy Robinson da nova versão da série de TV “Perdidos no espaço”. Ela interpreta Maren, uma jovem tímida na escola e superprotegida pelo pai (André Holland), que costuma trancá-la em casa à noite. E logo saberemos o porquê disso: nu made suas escapadas noturnas, Ma rende cepa coma boca o dedo de uma colega do colégio, durante uma festinha na casa de uma delas. Diante do escândalo, o paia abandona, e elas e rende ao impulso de atravessar o país para procurar sua mãe, que deixou a família quando ela ainda era um bebê, em busca de respostas para a sua condição — seria disfunção hereditária ou uma maldição?

—De muitas maneiras, é um filme sobre sobrevivência, de como permanecer vivo em um mundo que enxerga essas pessoas como uma aberração. Quer queiram, quer não, para sobreviverem eles precisam continuar comendo carne humana e, dentro dessa estrutura, não têm muitas escolhas — entende Taylor, 28 anos, que diz ter se sentido bem acolhida por seus colegas dentro de um set que tem lá seus muitos momentos macabros. — Especialmente por Timothée, que me cercou de carinho durante as filmagens. Eu me senti segura e protegida por ele. Estava sempre por perto para me confortar, fazer com que sentisse que eu pertencia àquele grupo.

Em sua cruzada, Maren topa com outros “comedores de gente”. O primeiro é Sully (Mark Rylance), um solitário de meia-idade que carrega consigo uma longa trança feita com os cabelos de suas vítimas. A figura de comportamento sinistro ensina a Maren algumas características de sua linhagem, como a capacidade de identificar outros da mesma espécie pelo olfato, mas a jovem desconfia de suas intenções e rejeita qualquer tipo de aproximação.

De volta à estrada, ela finalmente cruza o caminho de Lee (Chalamet), outro jovem de alma solitária em conflito com sua condição de canibal, que a leva para uma jornada emocional, cheia de descobertas mas também de frustrações. Uma delas é se dar conta de que nunca conseguirão se livrar da dieta de carne humana.

—Antes de filmar, não havia pensado nisso, mas vejo “Até os ossos” como uma metáfora para o vício. Enquanto filmávamos, eu me lembrava de outro filme que

fiz, “Querido menino” (2018, de Felix van Groeningen), sobre uma família que lida com a dependência do filho. Vejo como experiências similares entre os dois, aquela sensação extracorporal dos usuários de heroína se injetando em busca do êxtase. Depois vem a sensação de culpa, o questionamento sobre a realidade em volta — explicou o ator, que desta vez também assina seu primeiro filme como coprodutor. — Espero continuar produzindo, até mesmo projetos em que eu não participe como ator. Quero ajudar a dar espaço a vozes e rostos que historicamente não tenham tido tantas oportunidades na tela.

GUADAGNINO NOS EUA

É a primeira vez que Guadagnino filma fora da Itália. O diretor diz que o cinema americano e seus cenários povoam seu imaginário desde garoto, quando começou a sonhar em fazer filmes. “Até os ossos” é finalista dos prêmios Spirit Awards (melhor filme, atriz principal e ator coadjuvante, para Rylance) e Gotham Awards (melhor atriz e ator coadjuvante, também para Rylance), que abrem caminho para a corrida do Oscar.

—Acho que inconscientemente sempre tentei adiar o momento de filmar lá. Talvez porque a vastidão e a complexidade dos Estados Unidos merecessem o olhar de uma pessoa mais madura — disse o realizador de 51 anos. — A oportunidade surgiu inesperadamente quando Dave (Kajganich) escreveu esse roteiro e me deixou lê-lo. Era um projeto em que ele estava trabalhando de forma independente, não necessariamente endereçado a mim. Ao ler o roteiro, foi inevitável ver na história o tema da construção de identidades, de pessoas que buscam uma forma de possibilidade no impossível, e ambientada dentro de uma paisagem que sempre me fascinou.

EM ‘ATÉ OS OSSOS’, TIMOTHÉE CHALAMET E TAYLOR RUSSELL VIVEM JOVENS APAIXONADOS QUE SENTEM NECESSIDADE DE COMER CARNE HUMANA E GANHAM ABORDAGEM DE DESLOCADOS NA SOCIEDADE

“Vejo o filme como uma metáfora para o vício, aquela sensação extracorporal dos usuários de heroína se injetando em busca do êxtase. Depois vem a sensação de culpa”

Timothée Chalamet, ator

Segundo Caderno

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2022-11-30T08:00:00.0000000Z

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