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UMA VIDA CONTRA A ASCENSÃO DA TIRANIA

CASEY SCHWARTZ VIENA, ÁUSTRIA

Aos 44 anos, Keiron Pim é um escritor de Norwich, Inglaterra, que recentemente produziu a primeira biografia em inglês de Joseph Roth, o engenhoso, agonizante e alcoólatra jornalista e romancista austro-húngaro, cronista dos últimos anos do Império Habsburgo e da ascensão do fascismo na Europa. Por algum motivo, Roth, que morreu em 1939, mas cuja escrita é tão ressonante hoje como há cem anos, nunca havia tido uma biografia em inglês.

Pim leu uma das obras de Roth alguns anos antes —“Judeus errantes”, no qual Roth retorna à sua terra natal para descrever os “rabinos maravilhosos” e os crentes judeus que se reuniram a eles.

O biógrafo notou então a intensidade de Roth, que compara a um “expresso duplo”, além de sua voz, que atrai os leitores para cenas vívidas e sua relevância como uma testemunha indignada da ascensão da tirania. Do exílio, em 1934, Roth escreveu, por exemplo, uma declaração furiosa tão aplicável agora quanto era então: “A descoberta que marcou época das ditaduras modernas é a invenção da mentira descarada, baseada na suposição psicologicamente correta de que as pessoas acreditarão em um grito quando duvidam da fala.”

Foi a partir daí que nasceu a biografia “Endless flight” (“Voo sem fim”, em tradução livre), publicada na Inglaterra em outubro e que sai nos EUA no início de dezembro.

FILHO ÚNICO

Em Viena, Pim conhece o Leopoldstadt, histórico bairro judeu da velha Viena. Em 1920, havia 200 mil judeus vivendo na cidade, a maioria em Leopoldstadt, muitos deles refugiados do Leste, fugindo da pobreza e dos pogroms. Hoje, vivem menos de 15 mil judeus em Viena.

Roth veio da Europa Oriental, nascido em 1894 em Brody, perto de Lviv (então chamada Lemberg), que agora faz parte da Ucrânia. Seu pai enlouqueceu pouco antes de ele nascer, e Roth nunca o conheceu. Ele cresceu como filho único de uma mãe ansiosa e protetora, dependente de parentes para obter apoio financeiro. Cercado pelo antissemitismo, Roth se destacou na escola, esperando escapar. Viena seria a cidade onde se reinventaria, a ponte entre o seu passado e o seu futuro.

Os planos de Roth foram interrompidos pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. Suas experiências como soldado tornaram-se um assunto ao qual voltava repetidamente. Ele começou a publicar enquanto servia e tornou-se um mestre do “folheto”. Os romances vieram depois —16 deles, pela maioria das contas.

Durante a guerra, ele provavelmente trabalhou como censor, mas seu histórico ficaria sujeito a muitas invenções e ofuscamentos — após a guerra, Roth disse ter sido tenente, que havia sido capturado e escapado heroicamente. Ele às vezes usava uma medalha militar que comprara em uma loja de sucata.

As inverdades de Roth tornaram o trabalho de Pim como biógrafo muito mais difícil, mas ele passou a considerá-las com compaixão. Para Roth, essas fantasias eram “um autoconsolo, um refúgio, um alívio de uma realidade dolorosa”, disse Pim. Em circunstâncias tão difíceis, pessoal e politicamente, “você pode ver por que faria sentido se refugiar em um mundo de sonho”.

Roth bebia. Dizia ter começado a beber aos 8 anos de idade. Bebia calvados e schnapps e vinho quando estava de “dieta”. Pim argumenta que o alcoolismodeRoth,paraumjudeu de sua origem e época, fez dele “uma exceção cultural”. Os amigos de Roth, incluindo o popular escritor vienense Stefan Zweig, imploraram para queeleparasse.MasRothestava convencido de que o álcool fazia dele um romancista, não apenas um jornalista.

Alerta para a política, Roth viu antes da maioria que Adolf Hitler representava uma catástrofe. Seu livro de 1923, “The spider’s web”, foi o primeiro romance a mencionar Hitler, que naquele momento era um antissemita agitador prestes a ser preso por um golpe fracassado a uma década de chegar ao poder. Quando conseguiu, ordenou que todas as obras literárias “degeneradas” fossem queimadas em fogueiras públicas. Os livros de Roth foram os primeiros a desaparecer. Roth, então exilado em Paris, chamou as fogueiras de “auto de fé da mente”.

AMIGOS LEAIS

Examinando a vida de Roth, alguns o rotularam de escritor brilhante, mas um homem moralmente decepcionante. Ele deixou sua esposa, Friedl, sozinha em hotéis estrangeiros enquanto percorria a Europa para fazer reportagens, provavelmente exacerbando sua doença mental. Ela foi internada aos 30 anos. Enquanto isso, Roth teve casos, importunou conhecidos por dinheiro e, sempre, bebeu.

Michael Hofmann, o mais prolífico dos tradutores de Roth, argumenta que a condenação moral erra o alvo:

— Ele não é uma pessoa simples, mas acho que ele é uma pessoa fascinante e profundamente amável.

Roth tinha amigos leais até o fim, era charmoso e sedutor, mesmo quando estava a caminho do abandono alcoólico. Nunca fora judeu praticante e dizia ter-se convertido ao catolicismo, mas no fim da vida sentava-se no Jardim do Luxemburgo com um velho amigo, pedindo-lhe que cantasse as canções em iídiche que conheciam desde a infância.

Em 1939, aos 44 anos, em Paris, a cidade que representava pura esperança para ele, Roth desmaiou em um bar. Foi internado em um hospital para pobres, onde, segundo Bronsen, sofreu uma abstinência agonizante, gritando em alemão por uma bebida em seu leito de morte. Mas os atendentes falavam apenas francês. No ano seguinte, Friedl foi transferida para o Hartheim Killing Facility, perto de Linz, onde foi assassinada pelos nazistas.

Sóagora,emViena,Pimpercebe o quão perto Friedl e seus pais moravam do apartamento onde sua avó materna, Ilse Epstein, cresceu. Suas portas estão separadas por cerca de 200 metros, em lados opostos da Rua Am Tabor. Friedl morreu na Áustria, mas a avó de Pim escapou, chegando à Inglaterra em 1939. Ela conheceu seu avô e foi lá que deu à luz sua mãe e sua tia.

Pim diz que sua mãe ficava muito “fechada” quando surgiam assuntos de família. Havia muitas lacunas para Pim, mas também muitos pontos de convergência entre a história de sua própria família e a de Roth. Essas interseções, disse Pim, foram momentos inestimáveis, até mesmo mágicos, que deram vida a Roth, os momentos em que ele se tornou “quase real, na minha frente”.

JOSEPH ROTH GANHA BIOGRAFIA EM INGLÊS QUE REFORÇA SEU TESTEMUNHO INDIGNADO DO PODER DE HITLER ANTES DA GUERRA

Segundo Caderno

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2022-11-30T08:00:00.0000000Z

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