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OS OLHOS QUE ESCOLHEMOS USAR

GUSTAVO POLI esporteglb@oglobo.com.br

Oapito final deixou cinco corpos de bruços estirados no chão —com os rostos afundados na grama. Um deles chegava a tremer de tanto chorar. As camisas amarelas se misturavam com o verde-relva. Eram cinco equatorianos sentindo profundamente o fim do sonho da Copa do Mundo depois de três jogos. Do outro lado, o técnico Aliou Cissé se ajoelhou na beira do campo antes de ser soterrado por um mar de abraços. Nas ruas de Dakar, capital do Senegal, milhares saíram às ruas soprando vuvuzelas. É Copa do Mundo, amigo.

Não faz uma semana que o Equador abria a festa com dois gols sobre o Catar —e Enner Valencia liderava a profusão de sorrisos. Assim é a velocidade do Mundial. Pequenos e grandes dramas vão se sucedendo até que, daqui a 20 dias, proclamaremos um campeão —e nossa memória se lembrará difusamente dos heróis e vilões súbitos criados quando o holofote mundial ilumina um pequeno pedaço de terra.

No caso do Catar, é um pedaço realmente pequeno, que provou que muita grana pode comprar influência e suor alheio para produzir um show competente. Estádios e gramados são fantásticos —com camarotes VIPs que servem lagosta e parecem hotéis cinco estrelas. É um evento apenas de futebol, jura o presidente da Fifa, cercado de monarcas e gravatas.

Não muito longe da tristeza equatoriana (e da felicidade senegalesa), o futebol catari se despediu do evento perdendo para uma burocrática Holanda. Pouco antes do fim desse jogo, a câmera buscou na arquibancada um homem de bigode e duas mulheres. A primeira tinha o rosto descoberto. A outra usava uma burca escura e exibia somente a faixa dos olhos.

Eram olhos que soavam tão... expressivos, pareciam espiões de outra realidade. O corte seguinte mostrou chapéus, fantasias, torcedores maquiados de laranja. Foi como se dois mundos se encontrassem —o mundo da contrição e o mundo da expansão. A festa ocidental e a fé árabe numa sequência de filme.

Esta Copa, afinal, depende dos olhos que escolhemos usar. O copo meio vazio oferece esse minúsculo país em que as mulheres ainda buscam igualdade de direitos (apesar de avanços recentes) e criminaliza a homossexualidade. O copo meio cheio sugere que a lupa gigante pode funcionar como uma ducha civilizatória. Tudo bem que isso soa mais esperança que previsão.

Mas será que nós, ocidentais, do alto de nossa civilizada arrogância, temos tanta moral para criticar? Logo nós que achamos cabível perseguir ídolos por causa de preferência política? Não foram brasileiros a hostilizar Gilberto Gil no meio do estádio com celular em punho? Não foram brasileiros a celebrar a lesão de Neymar fazendo piadinha nas redes? O Lacração FC é o pior time da Copa.

Gilberto Gil e Neymar são artistas nacionais —no melhor sentido da palavra. Quando suas preferências políticas servem como desculpa para falta de empatia e educação, é porque o famigerado ódio do bem já metastizou. Nada é menos brasileiro do que essa ira santa. Já passou da hora de lembrar que a camisa amarela sempre foi sinônimo de alegria, diversão e tolerância.

A camisa amarela sempre foi sinônimo de alegria, diversão e tolerância

Catar 2022

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2022-11-30T08:00:00.0000000Z

2022-11-30T08:00:00.0000000Z

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