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A DOIDOBRÁS VAI DEIXAR DE SER UTOPIA

JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS segundocaderno@oglobo.com.br

Quem me deu o toque foi o cineasta Glauber Rocha. Na hora eu não prestei muita atenção ao troço porque o fabuloso diretor de “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, vestindoapenasumasungapreta,andavaagitado de um lado para o outro do apartamento. Ele alimentava o disparo das ideias com mordidas na maçã, que segurava numa das mãos, e as tragadas num charro de maconha, que apertava na outra. Parecia, ao vivo, eu como único espectador, um filme do próprio.

Glauber morava numa rua sem saída do Arpoador e achava esse tipo de endereço uma metáfora da situação em que vivia o artista independente brasileiro, isolado e sem meios de comunicação na ditadura. Foi aí, num intervalo das baforadas, que o cineasta me anunciou um projeto para a preservação cultural da sua turma de malditos: “A nossa única saída é criar uma Doidobrás.”

Eu me lembrei disso neste fim de semana, mais de 40 anos depois, vendo emocionado no Globoplay o documentário “Vale tudo com Tim Maia”, de Nelson Motta e Renato Terra. É mais um daqueles momentos de celebração saudosa dos nossos doidos, doidinhos e doidões, todos mortos tão jovens e aos olhos da plateia. O país nada fez para eles sobreviverem genialmente diferentes, mas em condições de nos dar por mais tempo a graça de iluminar a existência dos caretas.

Era sobre isso que Glauber Rocha falava, abalado naquele final da década de 70 pela falta de apoio à criação independente e pelas mortes recentes dos poetas Torquato Neto (28 anos) e Sidney Miller (35). Não sabia que logo adiante seria a vez de ele confirmar a maldição e, aos 42, bater as botas. A Doidobrás foi uma de suas últimas utopias. Seria uma boia para que nossos malucos de estimação não deixassem de sê-lo jamais, mas seguissem aqui com a little help dos

friends federativos — uma iniciativa que hoje ganharia a tradução de “Auxílio Emergencial Artístico”.

Tim Maia (morto aos 55 anos), Cássia Eller (com 39), Sérgio Sampaio (47), Cazuza (32), todos antecipavam em praça pública, no noticiário de todo dia, o que estava por vir —e eu acho que já contei a história triste da entrevista que precisei interromper com Raul Seixas porque, às duas horas da tarde, o maluco beleza desabou bêbado sobre o colo do repórter. Eram tragédias anunciadas, mas como revertê-las?

Como manter por mais tempo em ebulição essas metamorfoses ambulantes que inventam alegria, acendem o farol, e tornam a vida da plateia menos mixuruca e mais suportável?

Quando me foi anunciada por Glauber Rocha, a Doidobrás soava poesia demais para a dura realidade de uma hora daquelas. Hoje não. Belchior, outro da turma (autodeclarou-se morto aos 45), via “vir vindo no vento o cheiro de uma nova estação” —e pelas urnas de ontem, do Leme ao Pontal parece que é que o que está para acontecer. Não mais o culto da morte, mas a proteção à euforia da vida divulgada pelos grandes artistas — e, a propósito, o documentário de Motta e Terra termina com a multidão de fãs dançando em êxtase numa celebração a Tim Maia. O profeta Glauber viu antes. A Doidobrás vai deixar de ser utopia.

GLAUBER MORAVA NUMA RUA SEM SAÍDA E ACHAVA ESSE TIPO DE ENDEREÇO UMA METÁFORA DA SITUAÇÃO EM QUE VIVIA O ARTISTA INDEPENDENTE BRASILEIRO

Segundo Caderno

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2022-10-03T07:00:00.0000000Z

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