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RENASCE UMA ESTRELA

CULTUADO PIONEIRO NACIONAL DO GLAM ROCK E DA LUTA LGBTQIA+, EDY STAR LANÇA MEMÓRIAS E SINGLE, E COMEMORA: ‘NUNCA PENSEI EM CHEGAR AOS 45 ANOS... TENHO 84!’

SILVIO ESSINGER silvio.essinger@oglobo.com.br

“Uma velha coroca, dinossauro colorido passeando na Paulista”, define-se, com o humor que lhe é peculiar, o baiano de Juazeiro Edivaldo Souza — para o público em geral, Edy Star, o cantor que em 1974 filtrou a androginia glam rock inglesa em lentes tropicalistas no LP “Sweet Edy”.

Um pioneiro da arte assumidamente gay do Brasil, com passagens por artes plásticas, cabaré, teatro de revista e cinema, aos 84 anos ele finalmente estreia em livro. Amanhã, Edy lança em São Paulo (às 19h, na livraria Megafauna, no Edifício Copan) o seu “Diário de um invertido: escritos líricos, aflitos e despudorados (Salvador, 1956–1963)”. A compilação de textos de juventude surge acompanhada de duas gravações novas: a do blues “Homens” e a do hit pop espanhol oitentista “¿A quién le importa?”, lançadas no single “Outro olho no escuro”.

— É maravilhoso! Nunca pensei em chegar nem aos 45, e agora... meu Deus, tenho 84 anos! — espanta-se consigo mesmo o artista, que se diz um sobrevivente “da Santa Inquisição, da Aids, de um câncer, de uma tentativa de suicídio e da ditadura”.

Num país que hoje tem vozes LGBTQIA+ como as de Pabllo Vittar e Gloria Groove nas paradas de sucesso, Edy Star confessa:

—Gostaria eu que o público de hoje aplaudisse a mim também. Não porque fui pioneiro, porque fui eu o primeiro a dar a cara a tapa ou por respeito à minha idade, mas por meu valor artístico.

Artista que conviveu em Salvador com os jovens bossanovistas Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas também com o roqueiro Raul Seixas (que posteriormente o acolheu no Rio e o convocou a participar do hoje cultuado LP “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”, de 1971), Edivaldo acabou seguindo caminho próprio. Na Cidade Maravilhosa, trabalhou “em todos os cabarés” que lá existiam, da Lapa, da Praça Mauá e de Copacabana. E fez teatro de revista no Teatro Rival — num espetáculo, seu número mais aplaudido era a imitação de Maria Alcina, cantora recém-estourada no festival com “Fio Maravilha”.

— Fui assistir ao Edy e me apaixonei — conta Alcina, até hoje amiga do cantor. — Na época eu estava saindo da boate Number One e não tinha uma pessoa para ficar no meu lugar. Levei o dono para assistir o Edy no Rival e disse: “Esse menino é o babado!”

Uma vez na Number One (casa chique em Ipanema onde se apresentavam um iniciante onde Djavan, além de Paulinho da Viola, Maria Creuza, Toquinho e Vinicius), Edivaldo chamou a atenção de João Araújo, presidente da gravadora Som Livre, que o contratou para gravar “Sweet Edy”, LP em que nasceu a figura Edy Star. E para o qual ele recebeu canções de Caetano, Gil, Jorge Mautner e até uma da dupla Roberto e Erasmo, “Claustrofobia” (“Falo para o Erasmo que até hoje eu queria ouvir ele cantando essa música, e ele morre de rir”). Quando dizem que “Sweet Edy” é o primeiro LP da MPB LGBTQIA+, porém, o cantor corrige:

— O primeiro disco gay quem gravou foi Agnaldo Timóteo, o “Galeria do amor” (de 1975). Ficamos amigos da vida toda, e pouco antes de ele morrer (em abril do ano passado, aos 84) passamos uma tarde conversando.

‘À FRENTE DE TODOS’

Mas “Sweet Edy” não aconteceu (só em 2011, já cultuado, teve uma reedição pelo selo Joia Moderna, do DJ Zé Pedro), e o cantor seguiu trabalhando na noite, até que em 1992 mudou-se para a Espanha, onde passaria 20 anos como animador de boates. De volta ao Brasil, radicou-se em São Paulo e, acolhido pelos jovens, gravou o álbum “Cabaré Star”, idealizado e produzido pelo cantor Zeca Baleiro.

— Edy Star e Ney Matogrosso foram dois grandes estandartes da liberdade sexual nos anos 1970. Ney num lugar mais de prestígio emepebista/pop, e Edy numa vertente mais bagaceira, rockcabaré, quase punk —analisa Zeca. —E o cara ainda é uma enciclopédia, conhece tudo de música brasileira e caribenha, sabe tudo de boleros, de musicais... Sou muito fã de sua personalidade transgressora e de sua musicalidade fluida, alegre, brasileira.

Em “Cabaré Star”, Edy dividiu a faixa “Perdi o medo” (de Odair José) com a cantora Filipe Catto, que vê o ídolo como uma figura de ruptura do rock brasileiro.

—Acho que o rock sempre foi associado a uma atitude muito masculina, o que é uma fake news muito grande. Me dá nojo ver esses roqueiros brancos de merda falando palhaçada, Little Richard ficaria envergonhadíssima dessa gente — acusa. —O Edy ocupa esse espaço da pessoa pioneira, verdadeira, moderna e sofisticada, que estava à frente de todos, em todos os termos.

Às voltas com um projeto de biografia da cantora Miriam Batucada (que participou com Edy Star, Raul Seixas e Sérgio Sampaio do disco da Grã-Ordem Kavernista), o historiador Ricardo Santhiago travou contato com Edy em busca de uma entrevista. E acabou sendo brindado com o acesso ao vasto material que o baiano guardava de sua trajetória artística. De tudo, o que mais o interessou foi um caderninho espiralado no qual, de próprio punho, o artista escreveu o seu “Diário de uma prostituta” — as impressões de um jovem que tentava descobrir seu espaço, como gay na Salvador dos anos 1950. Texto que, complementado por outros escritos (seus, da mesma época, e analíticos, de outros autores da atualidade), deu origem ao “Diário de um invertido”.

—Esse livro nunca foi pensado para ser publicado, são minhas experiências de quando tinha 16, 17, 18 anos, que eu escrevia sem a menor pretensão de que um dia pudesse vir à luz — jura Edy. — O primeiro livro que li sobre a homossexualidade dizia que era um vício nefando um homem gostar de outro homem. A Santa Inquisição botava na fogueira. Você morria de lepra ou enforcado, tinha que se suicidar. Sofri muito até descobrir que havia outras pessoas como eu e assim assumir a normalidade da minha condição.

Elogiado pelo historiador Benito Bisso Schmidt como “uma fresta singular para conhecermos as subjetividades daqueles e daquelas que ousaram dizer não à norma”, o relato de Edy Star em “Diário de um invertido” é , nas palavras de Ricardo Santhiago, “um texto em movimento, uma escrita viva que vai acompanhando Edy em suas descobertas”. E também farto em passagens românticas, que vão na contramão do persistente preconceito de se associar homossexualidade à promiscuidade.

— Hoje é o sexo por sexo, quando para nós o sexo era um complemento do amor, do romance, de se gostar de alguém. Naquele tempo as pessoas escreviam e ficavam ansiosas esperando as cartas. Diziam “eu te amo”, “eu quero te ver mais uma vez”... Eu tinha essas cartas até que um dos meus casos, que depois se tornou evangélico, destruiu todas elas — lamenta Edy Star, para quem o amor hoje é “só para quem tiver dinheiro e cartaz”. —Tem pessoas que gostam de mim, mas amor mesmo é difícil. Sou um chato de galochas, eu me amo!

Autor do livro “A história sexual da MPB”, o pesquisador Rodrigo Faour admite ter demorado a entender a personalidade “complexa, irreverente e por vezes malcriada” do cantor.

—Ela é fruto de tudo que os LGBTs da idade dele, de camadas remediadas da sociedade, tiveram que passar para se impor —explica. —Mas Edy mostrou que é possível dar pinta com mensagens libertárias, anárquicas e criativas.

Segundo Caderno

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2022-10-03T07:00:00.0000000Z

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