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Para evitar o abismo

Natalia Pasternak Microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, pesquisadora do ICB-USP e autora do livro "Ciência no Cotidiano"

Surto de sarampo no Zimbábue reporta mais de sete mil casos da doença, com 700 crianças mortas. A história da vacinação e do recente crescimento da hesitação vacinal no Zimbábue encontra paralelos preocupantes no Brasil e no mundo. O Zimbábue já foi um exemplo de vacinação na África subsaariana. Mas uma crise econômica e política, somada à crescente influência de certas igrejas evangélicas que se opõem à imunização infantil de rotina, causou queda vertiginosa na adesão às vacinas, principalmente desde 2017. Agentes de saúde deixam o país em busca de empregos melhores nos países vizinhos.

O problema vai além de uma só nação. A Organização Mundial de Saúde e o Unicef anunciaram, em julho, que milhões de crianças no mundo estão com suas vacinas de rotina atrasadas. Entram nesta conta, claro, os efeitos da pandemia e de conflitos armados, mas o fato é que o resultado disso é o maior retrocesso global em programas de vacinação dos últimos 30 anos. Países com populações mais vulneráveis, e maiores índices de desnutrição infantil, são os mais atingidos. Diversas doenças infecciosas como o sarampo matam bebês e crianças que passam fome.

Os paralelos com o Brasil ficam claros: crise política e econômica? Temos. Crescente hesitação vacinal, com proselitismo antivacinas? Temos. Desigualdade social e desnutrição infantil? Também.

Dados recentes mostram que menos de 50% das crianças brasileiras entre 5-11 anos completaram o esquema vacinal para Covid-19. A campanha de vacinação contra a pólio, que se encerrou no último dia 30, computou apenas 54% das crianças vacinadas, muito abaixo da meta de 95%. Enquanto isso, no Espírito Santo, enfrentamos um surto de micobactéria. Trata-se de um microrganismo que pode ser ocasionalmente encontrado em procedimentos cirúrgicos, principalmente estéticos. O que chama atenção para outra deficiência da política pública nacional de saúde (como se o descaso pelas vacinas já não fosse ruim o bastante): a falta de rastreamento microbiológico.

Precisamos de sistemas unificados de informação sobre os tipos de bactéria que circulam dentro dos hospitais e também aqui do lado de fora, incluindo sobre a circulação de bactérias multirresistentes a antibióticos, assunto já apontado pela OMS em 2019 como uma das dez maiores ameaças à saúde pública global. Na mesma lista encontram-se hesitação vacinal, cenários de vulnerabilidade, dengue, poluição do ar e mudanças climáticas. Tem tudo isso no Brasil? Tem.

É necessário integrar observações climáticas, dados de desmatamento, queimadas, secas e saúde animal para construir sistemas de detecção de novas ameaças sanitárias. É trabalho silencioso, sem obras faraônicas para inaugurar, e com resultados quase invisíveis: epidemias e desastres que não acontecem. Um governante capaz de reconhecer a importância deste tipo de investimento não pode se deixar seduzir pelo canto de sereia do populismo fácil.

O próximo governo vai ter o desafio de restaurar — praticamente, reconstruir do zero — o Programa Nacional de Imunizações (PNI) com liderança forte, financiamento e plano de atuação de longo prazo, incluindo uma estratégia de comunicação que faça frente à mentira sofisticada e profissionalizada dos mercadores do medo. De estabelecer um sistema integrado para saúde, transversal entre todos os ministérios e órgãos da administração. E ter a visão e a serenidade para fazer disso um plano de Estado, não de governo.

Passado o circo das eleições e findos os debates, para citar uma jornalista francesa, “mais parecem programas do Porta dos Fundos”, cobremos do próximo governo uma gestão madura e comprometida com questões de ciência e de saúde pública. Ou corremos o risco de nosso próximo passo adiante ser para o fundo do abismo.

Próximo governo vai ter que restaurar o PNI com liderança, financiamento, plano de longo prazo e estratégia de comunicação

Saúde

pt-br

2022-10-03T07:00:00.0000000Z

2022-10-03T07:00:00.0000000Z

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