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MAIS UM INIMIGO

Covid-19 revela ameaça das infecções causadas por fungos

CLEIDE CARVALHO cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br

Causador da pandemia que matou cerca de 18 milhões de pessoas em dois anos, o Sars-CoV-2 ajudou a propagar ao mundo a ameaça de outro microrganismo, o fungo. Enquanto a medicina se debruçava sobre a ação do vírus, fungos despontaram em infecções secundárias, ao lado de bactérias, contribuindo para levar à morte milhares de pacientes internados em UTIs. As ocorrências acenderam um alerta na comunidade médica, que relata falta de testes e de rapidez no diagnóstico de doenças fúngicas endêmicas no Brasil.

Em 2020, um hospital de Salvador registrou surto causado por um fungo recémobservado em humanos, o

Candida auris. Multirresistente a medicamentos, é considerado grave ameaça à saúde e foi identificado pela primeira vez em 2009, no Japão. Contido na Bahia, o surto acomete agora dois hospitais em Pernambuco.

— Os fungos são um problema emergente no mundo — resume o infectologista Arnaldo Colombo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que participou do trabalho para conter o surto na Bahia.

A população conhece bem a ação dos fungos em doenças superficiais, como micoses na pele e nas unhas. O que preocupa os cientistas agora são as micoses capazes de danificar as vísceras, o que ocorre em ambiente hospitalar e atinge principalmente pacientes com imunidade comprometida, internados por longo tempo, e com procedimentos invasivos, como uso de cateter venoso central ou cirurgias.

— Hoje temos painéis para identificação de vírus, com testes de antígenos em cinco minutos. Não temos nada parecido para diagnóstico de infecção fúngica. Com a Covid, muitos foram a óbito sem saber a causa — diz Jaques Sztajnbok, supervisor da UTI do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.

O Candida auris é da mesma família do Candida albicans, um dos principais responsáveis pela candidíase, que afeta pele e órgãos genitais. O problema ocorre quando qualquer um deles chega à corrente sanguínea.

Segundo o infectologista Arnaldo

Colombo, a candidemia (infecção da corrente sanguínea causada por leveduras do gênero Cândida) é um grave problema de saúde no Brasil. A cada dez internados em UTI e infectados pela levedura, seis a sete morrem. Na Europa e nos Estados Unidos, os óbitos ficam entre três e quatro.

— Demoramos a fazer diagnóstico, usar a melhor escolha terapêutica e remover a fonte da candidemia. Os estudantes de medicina aprendem sobre bactérias, vírus e pouco ou nada sofre fungos — explica Colombo, acrescentando que os testes diagnósticos, melhores doqueaculturaconvencional, não estão disponíveis em 95% dos hospitais do país.

Falta ainda garantir testes para pacientes de tuberculose que não respondem ao tratamento convencional e podem ter a infecção causada por fungo, não por bactéria.

Professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto, Gustavo Goldman é um dos coordenadores de um estudo que mostrou que as infecções fúngicas potencializaram a ação do Sars-CoV-2. Entre os pacientes internados com Covid-19 e simultaneamente infectados pelo fungo Aspergillus fumigatus, a mortalidade chegou a 80%.

Para Goldman, as doenças fúngicas são negligenciadas. Segundo ele, enquanto há várias opções de medicamentos para combater bactérias, apenas quatro classes de drogas são voltadas ao tratamento de doenças fúngicas. Para piorar, algumas delas são usadas em agrotóxicos nas lavouras, cujo uso tem sido liberado indiscriminadamente, contribuindo para aumentar a resistência aos remédios humanos.

IMPACTO AMBIENTAL

Há milhões de espécies de fungos, mas cerca de 300 mil são conhecidas. Presentes no solo, são responsáveis pela decomposição de materiais orgânicos e ajudam as plantas. O ser humano inala diariamente milhares de esporos de fungos, mas o sistema imune elimina. Com imunidade baixa, o risco cresce.

O aquecimento global, diz Goldman, é outra ameaça, uma vez que fungos se desenvolvem bem entre 20°C e 30°C. Com a adaptação ao calor, a contaminação de seres humanos pode aumentar.

O desmatamento também preocupa. Em agosto passado,umadolescentede17anos morreu no Piauí por paracoccidioidomicose (PCM), popularmente chamada de paracoco ou doença do tatu. O fungo vive na terra e está presente na toca do bicho. O ser humano adquire a doença ao inalar o fungo que se espalha na poeira da terra revolvida. Estados com grande desmatamento, como Rondônia e Mato Grosso, estão na lista dos locais onde a doença é endêmica. O pesquisador Antonio Carlos Francesconi do Valle, da Fiocruz, lembra que o Rio de Janeiro registrou surto de PCM durante as obras do Arco Metropolitano.

Os mais jovens, de até 20 anos, costumam ter a forma aguda da doença. Adultos desenvolvem a forma crônica e a doença se manifesta com queda na imunidade. Causadora de lesões na pele e inchaço de gânglios, a doença é considerada estigmatizante e incapacitante. Pode atingir órgãos vitais e matar.

— A doença tem tratamento, mas o diagnóstico precisa ser precoce — diz.

O pesquisador chama a atenção ainda para outro surto identificado inicialmente no Rio e que já se espalhou pelo país: a esporotricose, causada pelo fungo Sporothrix. Conhecida como doença do gato, uma vez que o felino a transmite para humanos, a doença é de tratamento demorado — pode levar até dois anos.

Colombo, da Unifesp, diz que a esporotricose costuma atingir populações vulneráveis. O primeiro surto no Rio foi em 1998, com 4 mil casos. Agora, chegam a 10 mil e a doença se espalhou pelo país.

Saúde

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2022-10-03T07:00:00.0000000Z

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