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Respeitar e entender os votos

DEMÉTRIO MAGNOLI blogs.oglobo.globo.com/opiniao editoria.artigos@oglobo.com.br

As urnas falaram, mas em língua incompreensível para a maioria dos analistas. As sondagens eleitorais dos institutos sérios indicavam a hipótese — na margem de erro — de triunfo de Lula no primeiro turno. No lugar disso, os eleitores produziram um segundo turno competitivo entre Lula e Bolsonaro. O que deu errado?

O mapa do voto traz a resposta fundamental. O presidente extremista saiu-se muito melhor do que indicavam as pesquisas no Sudeste e no Sul. Ao longo de diversas eleições, o PT produziu “ondas vermelhas” de última hora. Desta vez, foi o bolsonarismo que deflagrou o movimento inesperado, uma onda espraiada por todo o Centro-Sul em eleições para governadores e o Congresso.

A oque parece, as filas diante das seções eleitorais não se deveram, apenas, ao procedimento de certificação digital. Nelas, havia eleitores que, em tese, não iriam votar. Mais: o feitiço do “voto útil” voltou-se contra o feiticeiro. Ciro Gomes e Simone Tebet praticamente desapareceram da cena, abandonados por eleitores que, na última hora, sufragaram Bolsonaro.

Qual foi a mágica?

Um mergulho no oceano de dados do Datafolha oferece uma explicação. A rejeição geral a Bolson aro, poucos upe riora50%,épux ad apara cima pelo eleitor adomais pobre, de renda inferioradois salários mí nim os(s/m).A rejeição geral a Lula, que gira ao redor de40%,é puxada par abaixo pelomes mo estra todos eleitores. Contudo, em todos os demais estratos, inclusive na classe média-baixa (2 a 5 s/m), a rejeição de Lula não só ésu peri oràdeBol sonar o, como situa-se em torno do perigoso patamar de 50%. O Brasil não tão pobre saiu para votar —contra Lula.

Durante quatro anos, Bolsonaro concentrou sua artilharia contra o voto livre, secreto e limpo garantido pela democracia brasileira. Seus adversários entrincheiraram-se na defesa de nosso sistema eleitoral. Nessa longa jornada, repetiram sem cessara primazia da vontade popular. Hoje, depois do espanto, não vale voltar atrás. É preciso respeitar o voto — todos os votos, inclusive aqueles destinados ao presidente antidemocrático.

Não adianta gritar “fascistas!”. A prática disseminada nas redes sociais tem o efeito contraproducente de fechar as portas ao diálogo e à persuasão. Respeitar significa entender as motivações de uma massa imensa de brasileiros que não se confundem com o núcleo minoritário de saudosistas da ditadura militar. O voto anti-Bolsonaro, como se sabe, decorre da memória dos quatro anos de seu desastroso governo. O voto anti-Lula, antiPT, também deriva de uma memória, não apenas de camadas de preconceitos.

O PT nasceu em São Paulo e alcançou seus primeiros grandes triunfos no Centro-Sul. Ao longo de quase duas décadas, tornou-se o partido preferido por largas camadas das classes médias urbanas. O cristal só se partiu bem mais tarde, sob os governos de Lula, fragmentando-se inteiramente no inverno dilmista.

Hoje se sabe que Sergio Moro e seus procuradores-militantes converteram o sistema de Justiça em ferramenta de um projeto político. Mas a revelação não apaga o mensalão e o petrolão, cuja existência é inegável. A memória dos escândalos de corrupção entrelaça-se à da depressão provocada pelas políticas econômicas populistas inauguradas por Lula e radicalizadas pela sucessora. A rejeição tem raízes políticas, não é um fruto envenenado distribuído por atores demoníacos.

Lula sabe de tudo isso, ainda que seus fiéis não saibam. Sua tentativa de circundar o obstáculo foi montara aliança com Geraldo Alckmin e chamar à formação de uma frente ampla democrática. A iniciativa, um gesto político genial, permaneceu incompleta. Faltou dar-lhe substância por meio de uma revisão crítica dos erros colossais do passado. O candidato até ensaiou fazê-lona sua entrevista ao Jornal Nacional, mas logo recuo upara sua redoma habitual. O Lu lada frente ampla acabou muito parecido com o presidente triunfalista do passado.

Agora, resta menos de um mês. O tempo curto é suficiente para dizer que Lula 3 não será a reprodução de um filme antigo. Sem girar o timão, Lula corre o risco de sofre ramais duradas derrotas. Ededeix aro Brasilà mercê de um bárbaro.

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