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NOSSA GUERRA CONTRA AS TREVAS

RUTH DE AQUINO ruth.aquino@oglobo.com.br

HAJA CORAÇÃO NA VOLTA AOS PILOTIS DA PUC LOTADOS POR JOVENS E VELHOS EM DEFESA DO ESTADO DE DIREITO

Os Pilotis da PUC do Rio de Janeiro estavam lotados. Na hora do ato, o Exército cercou a universidade e os helicópteros baixavam paralevantarpoeiraefazerestardalhaço.Paraintimidar. Saímos pela porta que hoje é o estacionamento, num corredor entre fileiras de policiais. De escudos, capacetes e cassetetes, nos ameaçando. Alguns de nós saímos para a clandestinidade e passamos a entrar na PUC pela mata, para mostrar aos amigos que não havíamos “caído” —não tínhamos sido presos.

O relato não é meu, mas de um colega de turma da Comunicação Social, com quem me formei em 1976 na PUC. Era maio de 1977, e Luiz Antônio Aguiar, hoje escritor premiado, estava ali, no Ato contra a ditadura militar, contra a tortura e os desaparecimentos de presos políticos. Eu tinha ido morar em Londres, para trabalhar na BBC, em rádio de ondas curtas. Aguiar, depois de formado, continuara na PUC estudando Sociologia. Nós nos reencontramos agora, emocionados, nos Pilotis.

Ali, nossa turma protestou, em 1975, contra o cancelamento de aulas dias seguidos por falta de professores. Levamos as carteiras escolares para os Pilotis, abrimos cartazes. Saímos no jornal. A PUC deu um jeito de nos graduar em menos tempo, três anos e meio. Incomodávamos. Estudávamos nos diretórios textos proibidos pela ditadura.

Nosso paraninfo, Dom Hélder Câmara, não compareceu. Eram tempos sinistros. O arcebisponãoquismandarnadaescrito.“Estamensagemteriaquedizeralgumacoisaeissocriaria problemas para nós”. Dom Hélder representava o Deus que zela pela vida, compaixão e justiça. Lemos um trecho de seu livro: “Seremos tão alienados, distantes e frios pra dar-nos ao luxo de procurar Deus em horas cômodas de lazer em templos luxuosos... e não no humilhado, no pobre, no oprimido, no injustiçado, sendo nós muitas vezes coniventes com essa situação?”

Homenageamos na graduação o jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura no DOI-Codi, em São Paulo, em 1975. Vlado se apresentara voluntariamente para prestar esclarecimentos sobre suas ligações com o Partido Comunista. Foi torturado. Para abafar o som da tortura, era ligado um rádio com som alto. A versão oficial dos militares foi que ele tinha se suicidado, enforcando-se com uma tira de pano. Tudo era inverossímil. Até a foto comprovava a mentira. O assassinato de Vlado insuflou protestos. Só em 2012 o registro de óbito foi retificado. Os jovens de hoje precisam ler isso, ou precisamos ler para eles.

Quando nos formamos, em 1976, todos nos recusamos a usar beca e chapéu. No fim de nosso discurso, o reitor, o padre Velloso, gritou :“Meus pêsames, aportada PU C está fechada para vocês!” Foi vaiado.

Ali, nos Pilotis da PUC, encontrei meu primeiro amor, pai de meu primeiro filho, que me deu dois netos. Haja coração nesse 11 de agosto, na volta a esse espaço lotado por jovens e velhos pacíficos em defesa do Estado de Direito. Meu colega Aguiar, cabelos brancos, estava coma cara pintada de verde e amarelo. Assinamos e lemos a Carta aos Brasileiros. Cantamos o Hino Nacional, de máscara. Estamos otimistas.

Precisamos combatera ameaça de uma teocracia armada no Brasil. Érea lo perigo de se instalar aqui uma idolatria às armas e uma doutrina evangélica única que desrespeita outras crenças. Um terror. Somos contra demônios e trevas. Contra pastores e pastoras que agem como aiatolás. São uma minoria, felizmente.

Andar com fé eu vou, a fé não costuma falhar. Obrigada, oitentões Gilberto Gil e Caetano Veloso, por fazerem meu 2022 ficar odara.

SEGUNDO CADERNO

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2022-08-12T07:00:00.0000000Z

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