Infoglobo

‘SOFRI TRANSFOBIA NO EXÉRCITO’

BRUNA BENEVIDES ENFRENTOU A VIOLÊNCIA EM CASA E A DISCRIMINAÇÃO NA MARINHA PARA SE TORNAR REFERÊNCIA NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS

Em depoimento a MARCIA DISITZER

N “asci em Fortaleza, numa família pobre e muito religiosa. Eu era a segunda de quatro filhos. Meus pais trabalhavam e trabalham até hoje com panificação. Estou com 42 anos e não tenho memória límpida da minha infância, até porque não podia ser quem era de verdade. A minha feminilidade causava vergonha nos adultos à minha volta. Sofria bullying lá fora e era novamente vitimizada dentro de casa. Fui submetida a inúmeras sessões de violência. Meus pais me batiam muito. Era meio um ritual. Tinha o aspecto de açoite, como se me causar dor fosse a missão deles para não me deixar seguir o ‘caminho do mal’.

Na adolescência, comecei o processo de identificação ao conhecer pessoas iguais a mim, da comunidade LGBTQIAP+. Em casa, a vigilância se tornava ainda mais pesada. Me vi elaborando planos de ir para Europa. Até que a minha mãe, que fornecia pão para quartéis, me inscreveu num concurso para a Marinha. Fiquei apavorada, não sabia nadar! Porém, percebi que poderia ser uma boia de salvação. Passei.

Depois de um ano no Recife, fui transferida para o Rio, aos 18 anos, e iniciei minha carreira militar. Paralelamente, fazia shows montada na noite carioca. Levava vida dupla. Só não era a Bruna no período laboral. Tinha aceitado que, apenas 30 anos depois, ao ir para a reserva da Marinha, poderia viver como a mulher que era. Caso contrário, seria mandada embora. Mas, nesse meio tempo, surgiu a comandante Bianca Santos, que foi afastada da Marinha por assumir sua identidade de gênero, mas entrou com ação. Em 2011, tomei hormônios e removi os pelos do rosto com laser. Decidi primeiro fazer curso de sargento para depois comunicar aos meus superiores que era mulher. Mas não queria ser aposentada, eu queria trabalhar... A Europa entrou no meu radar novamente como saída. Foi aí que conheci o Gustavo, meu marido. Em três semanas estávamos morando juntos, e a Europa ficou para trás. Com seu apoio, abri o jogo com o meu comandante. Passei por ‘avaliação psiquiátrica’ e fui diagnosticada como pessoa portadora de ‘transexualismo’, um ‘transtorno mental’.

Fui afastada, contra a minha vontade, das minhas funções por quatro anos. Em 2017, recebi o laudo definitivo de que era ‘incapaz’. A Marinha iniciou, então, um processo de reforma compulsória.

Imediatamente, entrei com ação e consegui impedir a minha aposentadoria. O meu caso veio a público por ser emblemático: pela primeira vez, na história das Forças Armadas brasileiras, uma mulher trans havia conquistado o direito de continuar trabalhando. Nesse mesmo período, a OMS deu a primeira declaração pública de que a transgeneridade iria deixar de ser vista como doença.

A Marinha interrompeu o processo de aposentadoria, mas não restabeleceu o meu trabalho. Meu processo continua. Estou no limbo: não existo fora dela, mas não cumpro expediente. Sou militar da ativa impedida de trabalhar por ser transexual.

Em 2014, aderi ao ativismo: essa foi a melhor resposta que poderia dar. Sou secretária de articulação política da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e faço o dossiê anual que mapeia a violência contra a população trans no país. Faço a diferença na vida de muita gente. Se não tivesse passado por tudo isso, não seria a mulher extraordinária que me tornei.” e

“MEUS PAIS ME BATIAM MUITO. TINHA O ASPECTO DE AÇOITE, COMO SE ME CAUSAR DOR FOSSE A MISSÃO DELES PARA NÃO ME DEIXAR SEGUIR O ‘CAMINHO DO MAL’”

Minha História

pt-br

2022-06-26T07:00:00.0000000Z

2022-06-26T07:00:00.0000000Z

https://infoglobo.pressreader.com/article/282965338782471

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.