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NA SEMANA DO ORGULHO LGBTQIAP+, PEÇA TEATRAL RESGATA A HISTÓRIA DE JORGE LAFFOND E VERA VERÃO, SUA PERSONAGEM MAIS CÉLEBRE, PARA QUEBRAR PRECONCEITOS E ESTABELECER UMA CONVERSA FRANCA COM A TRADICIONAL FAMÍLIA BRASILEIRA

Por EDUARDO VANINI | Fotos MATEUS RUBIM | Styling LUCAS MAGNO F.

São 10h de uma quarta-feira e, bem atrás da porta de um sobrado na Rua Joaquim Silva, na Lapa, a atriz Aretha Sadick é filmada de costas por uma cinegrafista. Vestida com um adereço de búzios na cabeça, ela se vira lentamente, encara a câmera e gesticula um bailar sutil com as mãos, ao som de “Ao senhor do fogo azul”, cantada por Virgínia Rodrigues. O ator Alexandre Mitre também registra tudo com o celular e mostra o resultado à amiga ao fim da sessão. Minutos depois, ele é Jorge Laffond e ela, Vera Verão, num dos últimos ensaios antes da estreia de “Jorge pra sempre Verão”, que acaba de entrar em cartaz no Teatro Ipanema e tem a filmagem gravada naquela manhã projetada entre as cenas. “Precisamos nos entender enquanto um que virou dois”, afirma Alexandre, sobre o esforço conjunto para levar ao palco as glórias e as dores de Jorge Laffond, ator carioca morto em 2003, aos 50 anos.

No espetáculo de uma hora, Laffond e a sua personagem mais célebre são evocados para travar uma conversa com a tradicional família brasileira sobre hipocrisia e preconceito. O primeiro “epaaaaaaaa!”, bordão mais conhecido de Vera Verão, a estourar no texto não é para fazer rir, soa mais como um sinal de alerta. Afinal, o mesmo país que dava à personagem uma das maiores audiências do humorístico “A praça é nossa”, do SBT, é também campeão em assassinatos da população LGBTQIAP+, cujo Dia do Orgulho é celebrado nesta terça-feira. “Não dá para comemorar”, afirma o diretor da peça, Rodrigo França. “Num primeiro momento, o senso comum pensou que se tratava de um musical. Mas como falar de um homem negro gay, que viveu nos anos 1990 e morreu na solidão, sem criar um manifesto? É um espetáculo de cura e de posicionamento.”

Laffond, que em sua biografia “Bofes e babados”, lançada em 1999, escreveu que “não levanta nenhum tipo de bandeira”, saiu de cena antes que os debates de gênero e identidade dessem um salto considerável no Brasil. Nos últimos anos, porém, passou a ser frequentemente rememorado como um corpo político que abalava, com a sua existência, as estruturas do preconceito. Criado na Vila da Penha, na Zona Norte do Rio, chegou a morar num barraco em Cordovil, durante o período mais difícil de sua infância, quando a mãe se separou do pai. Começou a trabalhar aos 9 anos, numa oficina mecânica, mas não abandonou os estudos, o que lhe garantiu acesso a duas faculdades: uma de Educação Física e outra de Artes Cênicas, passaporte para vida artística. Também estudou balé clássico e dança africana e chegou a dançar com a coreógrafa Mercedes Batista, além de integrar do balé do “Fantástico”, da TV Globo. Estreou na teledramaturgia em “Sassaricando” (1987), do mesmo canal, onde ainda participou do humorístico “Os Trapalhões”.

Mas foi em “A praça é nossa” que entrou de vez para o imaginário nacional, com a esquete da espalhafatosa Vera Verão. No quadro, a personagem sempre era chamada de bicha por um interlocutor, o que servia como a deixa para dar o seu aguardado rodopio e bradar o sonoro “epaaaaaaaa!”, dando início a uma confusão generalizada. Apresentador do humorístico, Carlos Alberto de Nóbrega já disse que a personagem era uma das que mais causava comoção junto à plateia. Marcelo de Nóbrega, filho do apresentador e diretor da atração, afirma que o mesmo se dava com a audiência. “Se o programa estava marcando nove pontos no Ibope, quando a Vera Verão entrava, ia para dez, onze. Nos shows da ‘Praça’, quando nos apresentávamos pelo Brasil, a plateia vinha abaixo com ela”, recorda-se. “Tinha ator que pedia para entrar depois, para pegar o clima no alto.”

Com 1,98m de altura, Laffond passava dos 2m depois de calçar os sapatos de salto alto da personagem e, para deixar o quadro mais cômico, entrava em cena acompanhado de Azeitona. Era o seu “chaveirinho”, interpretado por Edvan Rodrigues de Souza, que mede 1,53m e, vez ou outra, levava uma bolsada no rosto. Dessa parceria que durou oito anos, o ator se recorda de ter aprendido com Laffond as técnicas de cair no chão sem se machucar e a importância de ter o texto na ponta da língua. “Ele dizia: ‘Se errar uma vírgula, tiro você’”, recorda-se. “Na época, eu ainda era adolescente. Então, além disso, sempre me cobrava um bom desempenho na escola e pedia para ver o meu boletim.”

Sem recorrer a uma estrutura clássica de biografia, “Jorge pra sempre Verão” reúne esforços para fazer jus a uma história tão forte quanto negligenciada. O ponto de partida do projeto, aliás, é um pedido genuíno de perdão feito por Aline Mohamad, a produtora e autora do espetáculo. Ela é prima de segundo grau de Laffond, mas não teve a oportunidade de conviver com ele. Na verdade, sentia vergonha do parentesco, usado como bullying por aqueles que queriam provocá-la. “Meus tios e primos sempre faziam brincadeiras, me comparando ao Jorginho e mencionando os bordões da Vera Verão”, conta. “Não gostava dessa comparação. Era como se estivessem me xingando.”

“COMO FALAR DE UM HOMEM NEGRO GAY, QUE VIVEU NOS ANOS 1990 E MORREU NA SOLIDÃO SEM CRIAR UM MANIFESTO?” RODRIGO FRANÇA, DIRETOR TEATRAL

Com a chegada da vida adulta, Aline começou a trabalhar com teatro, abriu-se a ideias mais liberais e entendeu-se bissexual. Mas a virada de chave definitiva veio durante uma festa em que se viu especialmente fascinada por uma mulher trans. “Começamos a conversar, e senti um desejo que não era tesão, mas afeto. Pensei no Jorge e, quando cheguei em casa, caí no choro. Abri os olhos para quem eu era, comecei a sentir vergonha do que fui e decidi correr atrás desse perdão”, narra. Naquela madrugada, a produtora escreveu uma carta com um pedido de desculpa ao primo e a compartilhou com os amigos. Acabou adormecendo sobre o teclado do computador e, quando acordou, estava diante de uma resposta em uníssono: o que escrevera daria uma ótima peça.

Para finalizá-la, recorreu ao dramaturgo e pesquisador sobre vivências negras LGBTQIAP+ Diego do Subúrbio, dono do perfil @diegodosuburbio. Como Laffond viveu uma vida discreta e sua biografia não revela tantos detalhes de sua história (a publicação causou frisson ao narrar um romance com um famoso jogador de futebol sem mencionar o nome, mas o próprio autor disse ter evitado as passagens mais dolorosas), coube a Diego trazer as vivências de um homem gay preto suburbano para as cenas. “Falar de Jorge é falar de toda uma geração atravessada por ele, mesmo de forma negativa. Ele era um símbolo de força e energia que não enxergávamos tão abertamente naquela época.”

Uma das preocupações de Diego foi descolar o ator de sua Vera Verão que, como menciona o dramaturgo, era classificada por Laffond como uma entidade. “Queria que ele aparecesse humanizado, com suas batalhas diárias, dores, conquistas e amores”, afirma. “Ele era muito inteligente e intelectualizado. Quando o colocamos nesse lugar caricato, acabamos não enxergando a pessoa. A Vera Verão foi a forma como ele pode se expressar, mas ele era muito mais. Riam dele, mas não com ele.”

A confusão entre criador e criatura se dá principalmente na cabeça dos mais jovens, que costumam conhecer a Vera Verão, mas não o Jorge. Ainda assim, a volta dos dois à baila por meio de um espetáculo causou burburinho nas redes tão logo a produção anunciou as audições para o papel do ator. Cerca de cem rapazes se candidataram ao posto exclusivo para atores negros retintos, e 36 deles chegaram às audições. Enquanto Noemia Oliveira, que interpreta a prima Aline na montagem, e Aretha Sadick foram diretamente escaladas para os respectivos papéis, Alexandre Mitre passou pela bateria de testes. “Ele tem uma coisa que a física não vai explicar. É como se a equipe tivesse ouvido que era ele”, afirma o diretor Rodrigo França, depois de rasgar elogios a Aretha. “Uma das maiores atrizes do país.”

No caso de Alexandre, que é formado em História e cursa teatro na Casa das Artes de Laranjeiras, este é o seu primeiro grande trabalho conquistado justamente após o primeiro teste como ator. Para dar conta do recado, trabalhou a embocadura de Laffond e aprendeu a emitir uma espécie de sibilar entre as falas, tudo alcançado após horas de pesquisas em vídeos. Também há um movimento contido dos braços, sempre rentes ao tronco. “Percebi que foi a maneira que ele encontrou para gesticular. Como era muito grande, caso os esticasse, sairia do quadro na TV.”

Aretha, por sua vez, parece flutuar em cena ao dar à sua Vera a aura de entidade da qual Jorge falava. “Ele tinha um jeito de andar característico pelo fato de ser bailarino, o que influenciava na forma como girava antes do ‘epaaaaaaaa!’”, descreve a atriz, que decodificou cada camada desse movimento após “dormir e acordar assistindo aos vídeos da época”. “Tem um detalhe do dedo indicador levantado ao final que é muito importante.”

Mulher trans nascida em Duque de Caxias, ela se reconhece como alguém fortemente impactada por Jorge e Vera na construção de sua feminilidade e já fez uma performance inspirada neles. Mas, em cena, tanto ela quanto Alexandre rejeitam a caricatura. Parecem mais interessados em fundir-se com seus personagens. “O texto permite criar confusões do tipo: ‘Estou falando de Vera ou de Arteha?’. Vera e Jorge influenciaram muitas trans e bichas pretas efeminadas”, reconhece a atriz.

Sem fazer menções diretas, a peça também toca num dos pontos sensíveis que rondam a morte precoce do ator, oficialmente atribuída a problemas cardiorrespiratórios. Antes disso, porém, o próprio Laffond narrou, em entrevista ao programa “TV Fama”, da Rede TV, um episódio em que teria sido impedido de entrar no palco de um programa de auditório usando roupas femininas, porque um famoso padre estaria entre as atrações do dia. Segundo Rodrigo França, o diretor do espetáculo, fontes próximas a Laffond afirmam que ele entrou em depressão depois disso, passando a maior parte do tempo recluso em seu apartamento. “Não me interessa o nome, mas a circunstância que faz com que muita gente se comporte dessa mesma maneira e questione pessoas, roupas e comportamentos. Prefiro que quem esteja assistindo ao espetáculo pense em si do que simplesmente aponte o dedo e acredite que só uma pessoa age assim”, afirma.

Laffond e Vera ainda têm muito a dizer. e

“VERA E JORGE INFLUENCIARAM MUITAS TRANS E BICHAS PRETAS EFEMINADAS” ARETHA SADICK, ATRIZ

Ela

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