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O caminho de Richarlyson

MARCELO BARRETO

Oesporte moderno nasceu excludente. No fim do século XIX, sua prática estava associada ao conceito de amadorismo, e quem tinha tempo e dinheiro para cultuar o corpo? Homens brancos ricos e seus filhos, que precisavam ser disciplinados nas escolas da elite. Curiosamente, foi o capitalismo que quebrou essa corrente, primeiro quando o futebol passou a ser visto como pacificador dos funcionários das fábricas nas folgas de fim de semana (até então dedicadas à bebida e à pancadaria) e depois quando se tornou ele mesmo fonte de renda — caminho que seria seguido por outras modalidades. Ganhar ou perder deixou de ser apenas uma questão de cavalheirismo, e o esporte cedeu à meritocracia. O judeu Lon Myers passou a ser aceito nos clubes da elite de Nova York quando se tornou o atleta mais rápido a correr a milha. Jackie Robinson abriu o caminho para jogadores negros nas grandes ligas do beisebol porque o dono do Brooklyn Dodgers viu nele a chance de ganhar um campeonato. Mas, apesar dos resultados, a acolhida era relutante e efêmera: Jesse Owens, celebrado pela lição que deu em Hitler na Olimpíada de Berlim, terminou a carreira correndo contra cavalos para ganhar a vida no Sul segregado dos Estados Unidos, e declarou ter sofrido muito mais

com o racismo em seu próprio país. Para as mulheres, foi preciso abrir o próprio caminho. O Barão de Coubertin, criador dos Jogos Olímpicos, disse que era indecente vê-las torcendo-se no esforço físico do esporte. Aceitou a contragosto sua participação no evento. Levou mais de um século para que a igualdade entre gêneros fosse atingida nos Jogos, e agora se debate um tema que o velho barão jamais imaginou: como incluir as pessoas transgênero num universo que se divide entre masculino e feminino. A natação acaba de entrar na lista de esportes que tomaram decisões a esse respeito, restringindo a participação de atletas que fizeram a transição depois da adolescência e prometendo lançar uma categoria aberta como compensação. Coubertin criou o conceito de olimpismo depois de conhecer o sistema educacional da Inglaterra. Achou que os rapazes ingleses, por praticarem esporte nas escolas, estavam mais preparados para a guerra do que os franceses, que considerava afeminados porque se dedicavam às artes nas horas livres. Não é dele a frase futebol é jogo para homem, mas a origem é a mesma. No século XX, a cultura esportiva serviu também para reforçar estereótipos sociais de sexualidade: nos vestiários masculinos, só homens; nos femininos, só mulheres; e todos deveriam ser heterossexuais cisgênero.

Já vamos avançando pelo século XXI e ainda é um evento quando Richarlyson diz ser bissexual. Como jogador, não bastou ser campeão mundial pelo São Paulo e convocado para a seleção para poder tratar publicamente de sua orientação sexual. Agora, quando começa a carreira de comentarista, sentiu-se acolhido em participação no podcast “Nos armários dos vestiários”. No mês do orgulho LGBTQIAP+, é uma voz importante que se levanta — para que um dia não seja mais necessário se manisfestar sobre o que, no fim das contas, é só o direito de cada um.

Dois séculos depois, o esporte moderno ainda luta para deixar de ser privilégio de homens brancos ricos

Esportes

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2022-06-26T07:00:00.0000000Z

2022-06-26T07:00:00.0000000Z

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