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‘MUITAS OUTRAS VOZES PRECISAM SER OUVIDAS E TER ESPAÇO’

Iniciativas no Rio e em São Paulo apostam na informação e em pratos coloridos, saudáveis e equilibrados para driblar resistências

LUDMILLA DE LIMA ludmilla.lima@oglobo.com.br Presidente do Instituto Igarapé estará em julho na abertura da Conferência da Glocal, que reunirá lideranças em torno dos objetivos para 2030 da ONU Ilona Szabó/ CIENTISTA SOCIAL

Acientista social Ilona Szabó, liderança reconhecida internacionalmente em campos como o da segurança, participa da abertura, no dia 13 de julho, na Marina da Glória, da Conferência da Glocal Experience. “Mais do que nunca, precisamos sentar juntos, pensar juntos e construir as saídas para os nosso desafios comuns”, diz a empreendedora e presidente do Instituto Igarapé, que fará um convite ao diálogo. A programação reunirá representantes locais e globais para debater os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU até 2030, como erradicação da pobreza, igualdade de gênero e água e saneamento para todos. A Glocal Experience é uma iniciativa da Dream Factory, com correalização da Editora Globo e os parceiros oficiais de mídia O GLOBO, Valor Econômico, Extra e CBN.

Como será a sua fala no painel de abertura da Conferência?

Agente tem problemas locais e globais interconectados, desafios muito grandes em temas que são de interesse comum, na questão climática, de saúde pública em decorrência da pandemia e nade aceleraçãodigital, sem falar da guerra, com impactos diretos na segurança alimentar. Em um momento de tantas crises, a gente também vê intolerância, polarização, uma volta a um populismo nacionalista que não aceita e não fortalece a cooperação global e o multilateralismo, eissoé muito perigoso. Todo o foco do painel será mostrara importância da construção coletiva e plural, sobre regras democráticas, das soluções dos nossos desafios. Temos um mundo onde muitas outras vozes precisam ser ouvidas e teres paçonas mesas de discussão e decisão. Farei um convite ao diálogo.

“Não conseguiremos avançar sem que o governo priorize essas metas, sem que a sociedade participe e sem incluir de forma responsável o setor privado, em especial quando se pensa na transição energética”

Boa parte dos atores na Glocal é da sociedade civil. Pode vir desse campo a esperança de

um mundo melhor?

Sem dúvidas. Em uma democracia, agente só consolida os avanços, os direitos e as responsabilidades quando há uma sociedade civil atuante, independente e forte. Estamos vivendo um momento de perda do espaço cívico sem precedentes desde a redemocratização. Isso coloca também muita pressão nos grupos da sociedade civil, e são muitas as pautas urgentes, muitos os temas desconstruídos. Agente espera que qualquer resultado da eleição traga a possibilidade de retorno da participação cívica. Eque agente consiga voltaras entarn ames a com quempensadiferente,masdefende o interesse público e tem princípios comuns.

Como alcançar objetivos tão urgentes?

Precisamos passar por cima de diferenças e construir respostas baseadas no nosso atual e melhor conhecimento, nas tecnologias disponíveis, nas experiências nacionais e internacionais, olhando as lições para dar o salto que o Brasil precisa. Há os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris. Não conseguiremos avançar sem que o governo priorize essas metas, sem que a sociedade participe e sem incluir de forma responsável o setor privado, em especial quando se pensa na transição climática e ambiental.

Falando de Brasil, quais são as metas que mais preocupam?

Não dá para aceitar tanto retrocessona segurança alimentar.Oc om bateàfo me deves er imediato. Há também ageração de empregos sustentáveis, já alinhados às economias do futuro— a ambiental, a criativa, a digital e ado cuidado— e muitos desafios em relação à insegurança, corrupção e impunidade. E não posso deixar de falar da mãe de todos os desafios, pelo pouco tempo para equacioná-lo: criar resiliência climática. Não basta mais buscar neutralidade de carbono; te mosque buscara proteção da nossa natureza e dos povos originários e tradicionais.

Na Amazônia, o Igarapé trabalha junto amulheres que defendem a floresta e são alvos de ameaças. Como vê esse cenário?

No Igarapé, atuamos no reforço do cumprimento da lei para viabilizar o desenvolvimento sustentável na Amazônia. Temostrês pilares: compreender o ecos sistemado crime ambiental; fortalecera governança de comando e controle; e trabalhara transparência, com uma análise de risco mais comprometida do setor priva dopara atrair capital responsável. Sobre o primeiro pilar, o Brasil figura nas listas dos piores países do mundo em set ratando de violência contra defensores da floresta, masa perspectiva de gênero é pouco trazida ao debate. Estamos trabalhando com defensoras de diferentes regiões da Amazônia, e elas mesmas estão mapeando as redes de proteção existentes e fazendo pesquisas para compreender melhor as dimensões da violência e as possíveis respostas em políticas públicas.

Você já foi alvo de misoginia e ataques nas redes. Como ser atuante sem se deixar contaminar pelo ódio?

Há muitas pessoas no Brasil sendo atacadas eme preocupa masque estão na linha de frente. Mais do que nunca, temos que nos unir e criar redes de proteção e coalizões, dar visibilidade aboas soluções, não aceitar quando limites são ultrapassados e exigir justiça quando ataques chegam avias de fato, como no caso de tantas lideranças indígenas, dos indigenistas Bruno e Maxciel e de Dom Phillips, por exemplo. De maneira alguma podemos deixar que seja normalizado esse estado de coisas. O que nos move é que, juntos, somos mais fortes.

“M as, se você não come carne, então come o quê?” A pergunta feita aos que abandonam uma dieta à base de proteína animal fica mais frequente quando quem adere a uma alimentação plant based (à base de alimentos vegetais) mora na favela. As explicações são muitas. A primeira é cultural. Estamos habituados a consumir proteína animal em todas as refeições. Não à toa, um prato sem carne é considerado “pobrinho”, sem sustância —o que está longe de ser verdade. A outra é que a dieta é associada a um estilo de vida caro, luxuoso, inacessível para quem vive em comunidade. —Desde sempre fomos condicionados a comer proteína animal, e o entendimento que a favela tem sobre ser vegano é que esse estilo de vida não gera saúde — diz Celso Athayde, CEO da Favela Holding e fundador da Central Única das Favelas (CUFA). —Mas é muito importante falar sobre esse tema para que as pessoas tenham a chance de decidir a partir do conhecimento, eliminando os mitos, além de ser uma oportunidade de empreender. É exatamente isso que algumas vozes periféricas têm feito, mudando o tom do discurso e mostrando que é possível ter uma alimentação boa, bonita e equilibrada em qualquer lugar. Regina Tchelly, por exemplo, plantou a semente da mudança quando criou o Favela Orgânica, nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio. Hoje, o projeto já faz parte da comunidade e tem até calendário de festas. —Minha bandeira nunca foi o veganismo, mas mudar a relação das pessoas com a comida, mostrando que é possível ter uma boa alimentação com poucos recursos, aproveitando o que se tem em casa —conta Regina, que tem uma série no YouTube ensinando a multiplicar os alimentos da cesta básica vegetal. —Ensino a plantar, colher, comer e gerar renda.

EQUILIBRADA E DIVERSIFICADA

Combater a fome é a premissa do Semeando Amor, em Rio das Pedras. A saída para isso foi uma alimentação 100% vegetal. Todo sábado voluntárias fazem uma triagem, separam em minicestas básicas e as distribuem para cerca de cem idosos, doentes e mães solo. —Ninguém tinha dinheiro para comprar carne, mas era muito desperdício, muita coisa estragava. Vimos que podíamos mudar isso — diz Ivone Rocha, que está à frente do projeto.

E tem dado certo. Quando sabe que tem “salmão” no almoço do trabalho, Maria Eunice já pede uma coisinha diferente. “Salmão” é como chamam salsicha por lá, e faz tempo que ela eliminou embutidos, processados e industrializados da alimentação. Agora, em seu prato imperam legumes, frutas, grãos e vegetais.

—O que as pessoas desperdiçam, eu aproveito. Uma banana mais passada vira um doce, um bolo —conta ela, que mora com o marido e os filhos. —Levo as comidas, depois digo o que é. Durante a semana, 20 crianças usam o espaço para aulas de reforço, com direito a lanche, claro. —Desde setembro elas não consomem aqui refrigerante, nem salgadinhos de pacote —diz Ivone. Críticas a uma alimentação sem produtos de origem animal na infância não são raras. Existe sempre o receio de ficar faltando algo, mas, de acordo com Bruna Crioula, nutricionista, mestranda em Ciências Sociais e fundadora da Crioula Curadoria Alimentar, o importante é que a dieta à base de plantas seja diversificada e equilibrada, na qualidade e na quantidade: —Excluir animais da dieta não traz qualquer prejuízo às nossas demandas nutricionais, independentemente da fase da vida. Diversidade vai além das gôndolas dos supermercados e alimentos ultraprocessados. Comida de verdade é arroz, feijão, mandioca, amendoim, milho, favas, folhas, frutas, sementes.

Falando não apenas com a comunidade, mas com toda uma geração, os gêmeos do Vegano Periférico, Eduardo e Leonardo Santos, de Campinas (SP), são referência contra a exploração animal e a favor de barriga cheia. Diariamente, eles postam nas redes sociais pratos feitos repletos de cores, nutrientes e informação.

—Se eu fosse ter uma alimentação com proteína animal saudável, sem embutidos, certamente seria mais cara. O que eu como é mais colorido, mais nutritivo, tem muito menos gordura e é mais acessível —diz Eduardo. O objetivo é inspirar, completa Leo.

—Não tenho acesso a tofu, cogumelos, aspargos. É caro e não tem perto de mim. É muito longe da realidade. O que fizemos foi criar uma estética que não tinha na periferia, com a parede que a gente tem, com o prato que a gente come, sem frescura, mostrando aquele produto que custou R$ 5 no mercadinho —ressalta. —Fazemos um recorte mais acessível expondo nosso dia a dia, o que mudou completamente a cara do veganismo. A questão cultural é tão forte quando consumir porco, vaca. A gente tem que conversar para mudar na raiz.

Segundo pesquisa do Ibope, se, em 2012, 8% da população se autodeclarou vegetariana, essa porcentagem subiu para 14% seis anos depois. Na mesma consulta, 60% da população disse que consumiria mais produtos veganos caso os preços fossem compatíveis aos de produtos habitualmente consumidos.

A família de Thiago Vinicius de Paula Silva sempre trabalhou no mercado gastronômico de São Paulo, em restaurantes “de bacana”. Em casa, essa experiência, somada à da bagagem ancestral da mãe, tias e irmãs, criou um tempero único. E ele viu que, a partir dali, poderia contar uma nova história.

—Tia Nice (mãe de Thiago), como toda mulher preta da periferia, fez vários corres. Lá em casa sempre teve comida gostosa, boa. Quando a gente não tinha acesso a carne, ela recorria a plantas alimentícias (não convencionais, as PANCs) do quintal, fazia aquela saladona —lembra Thiago, destacando a diversidade que há nisso. —A riqueza das plantas, das folhas, das verduras é maior do que aquelas 30 partes do boi que a gente come.

ENTRE OS 50 DO MUNDO

Esse sonho se concretizou em 2019, quando eles abriram o Organicamente Rango, em Campo Lindo, na Zona Sul de São Paulo, um restaurante sustentável, com preços populares e, em alguns casos, até de graça. Diariamente, 800 refeições são distribuídas em uma ocupação onde vivem 300 famílias. Desde o início da pandemia, já foram doadas 300 mil marmitas. —Quem ensina a cidade a comer bem são as empregadas domésticas, que saem da favela e vão cozinhar comida saudável para suas patroas. A comida vegetariana, orgânica, é uma reconexão com a comida da roça —acredita Thiago. —A comida da favela é mais gostosa do que a servida nos Jardins, em Pinheiros, em Copacabana ou no Leblon. Lá, é apenas saudável. A comida da favela é terapêutica, ancestral.

Thiago entrou na lista 50 Next, do World’s 50 Best Restaurants, que destaca jovens com iniciativas que podem mudar os rumos da gastronomia no mundo, na categoria empreendedorismo criativo. —Esse prêmio não só coloca a gente no circuito gastronômico de São Paulo, mas representa todas as Tias Nices que fazem parte do nosso dia a dia. Assim vamos desenhando a narrativa de uma periferia colorida, inteligente, e que não tem só vulnerabilidade. Somos a primeira geração que não quer sair daqui, que quer ficar e melhorar a quebrada —conta Thiago, que tem 15 empregados. —Compro no mercadinho local, que emprega 15 pessoas, compro frutas e legumes da agricultura familiar, que emprega outras dez. E, assim, essa onda de prosperidade vai se alastrando.

“Excluir animais da dieta não traz qualquer prejuízo às nossas demandas nutricionais em nenhuma _ fase da vida” Bruna Crioula, nutricionista e fundadora da Crioula Curadoria Alimentar

“A comida vegetariana, orgânica, é uma reconexão com a comida _ da roça” Thiago Vinicius, eleito um dos jovens que podem mudar a gastronomia no mundo

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