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Mais meninas resistem à mutilação genital

Em Serra Leoa, um número crescente de jovens mulheres se arrisca a sofrer isolamento social ao recusar cerimônia de ingresso no mundo adulto em que a prática tradicional é consumada

STEPHANIE NOLEN Do New York Times

Quando os resultados do exame final do ensino médio de Seio Bangura chegaram há pouco tempo, ela descobriu que tinha tirado notas altas o suficiente para entrar na faculdade. Foi um momento emocionante para essa filha de agricultores que nunca terminaram o ensino fundamental. Bangura, porém, não está fazendo planos de estudo. Em vezdisso,elapassaamaiorpartedosdiassentadaemumbanco, observando os outros irem para a aula ou para o trabalho. Bangura, de 18 anos, saiu de casa há quase cinco, depois que seus pais lhe deram uma escolha: ser iniciada em uma cerimônia de circuncisão feminina ou ir embora. A cerimônia permite a entrada no bondo, ou “a sociedade”, um termoparaosgruposbaseados em gênero e etnia que controlam grande parte da vida em Serra Leoa. —Minha mãe disse: “Se não vai fazer o bondo, você tem que ir embora” — relembrou Bangura, com sua voz baixa, mas seu queixo desafiadoramente levantado.

A escolha levou ao corte do apoio financeiro da família e a deixou incapaz de pagar por seus estudos ou se casar.

‘MATO DO BONDO’

Por mais de duas décadas, tem havido um esforço em todo o mundo em desenvolvimento para acabar com a mutilação genital feminina, um ritual secular ligado a ideias de pureza sexual, obediência e controle. Hoje,SerraLeoaéumdospoucos países da África Subsaariana que não a proibiu. O corte ainda é praticado por quase todos os grupos étnicos do país, mas está agora no centro de um intenso debate. Grupos progressistas, muitos apoiados por organizações internacionais, estão pressionando para proibir a prática, enquanto as forças conservadoras dizem que é uma parte essencial da cultura. Enquanto essa batalha se desenrola na mídia e no Parlamento, um número crescente de meninas e mulheres jovens como Bangura está lidando com o assunto com as próprias mãos. Um ato de desafio, que, uma geração atrás, seria quase inimaginável: elas estão se recusando a participar da iniciação, dizendo a suas mães e avós que não se juntarão ao bondo. Mais de 90% das mulheres com mais de 30 anos em Serra Leoaforamsubmetidasaocorte genital, em comparação com apenas 61% daquelas de 15 a 19 anos, de acordo com a

A jovem Seio Bangura, que foi expulsa pelos pais ao recusar a mutilação: sem faculdade, casamento, festas ou funerais do seu grupo étnico pesquisa mais recente sobre o assunto, realizada pelo Unicef em 2019. A prática é normalmente realizada no início da puberdade, embora existam áreas do país onde é feita em meninas muito mais jovens. Recusar o bondo tem um grande custo social. As mulheres que não aderiram são, por costume, se não por lei, proibidas de se casar; de representar suas comunidades em eventos religiosos ou culturais; de participar de celebrações ou funerais; ou de servir como chefe ou no Parlamento. Namaioriadoscasos,ainiciaçãoenvolveaexcisãodoclitóris e dos pequenos lábios com uma navalha por um membro sênior da sociedade chamado sowei, que não tem treinamento médico, mas acreditase ser espiritualmente poderoso. A cerimônia é realizada em acampamentos só para mulheres, que antes eram rurais, mas agora ficam às vezes em cidades, conhecidos como o mato do bondo.

As leis contra a prática tiveram uma aplicação desigual e resultados mistos. Alguns países, como Egito e Etiópia, viram as taxas caírem drasticamente. Mas em outros, como Senegal e Somália, o declínio

Um demônio do bondo, figura-chave nos rituais de iniciação social em que a mutilação genital ocorre foi insignificante. Globalmente, o número de meninas em risco de serem mutiladas continua a crescer, porque os países sem leis ou fiscalização têm grandes populações jovens e em rápido crescimento. Embora Serra Leoa tenha uma das maiores taxas da prática do mundo, também é um dos poucos lugares onde o corte apresenta um declínio sustentado, à medida que mais e mais jovens resistem. As opiniões de muitas meninas e mulheres jovens estão sendo influenciadaspeloativismolocal. Programas de rádio, outdoors e grupos de teatro itinerantes vêm espalhando a mensagem de que o corte é perigoso, pode causar sérias dificuldadesparaasmulheresnoparto,prejudicasuasaúdesexuale

viola os direitos humanos. Bangura, que mora com a família de sua amiga Aminata desde que saiu de casa, ouviu a mensagem de que a prática era perigosa de seu pastor na igreja e de um professor na escola. A maioria de suas amigas estava ansiosa para se juntar ao bondo, mas, como ela, algumas estavam hesitantes e discutiram o assunto de maneira privada entre si. Essa é uma mudança significativa, pois se diz que discutir o que acontece em seu grupo, incluindo os ritos de iniciação, traz o risco de uma maldição.

O problema, descobriu Bangura,

é que a mudança social não acontece de forma rápida ou organizada.

— As pessoas não odeiam seus filhos — disse Chernor Bah, da Purposeful, uma organização na capital do país, Freetown, que trabalha para acabar com a prática. — Elas estão tomando o que percebem como uma decisão racional e no melhor interesse para a vida de seus filhos.

Uma proposta de emenda à Lei dos Direitos da Criança, que está sendo revisada pelo Ministério de Gênero e Assuntos Infantis de Serra Leoa, codificaria o corte como uma “prática prejudicial” e tornaria ilegal realizar o procedimento em menores de 18 anos. Bem bem menos do que a proibição que muitos críticos desejam.

AVÓS, MÃES E FILHAS

Mas o caminho para tornar o procedimento ilegal não é claro. Instituições e indivíduos poderosos continuam a defender a prática, alegando que é uma parte fundamental da cultura e dos valores de Serra Leoa. Essas pessoas muitas vezes dizem que o movimento anticorte é uma importação ocidental, uma tentativa de corroer os valores tradicionais e um impulso para a promiscuidade.

Políticos que buscam votos muitas vezes se voluntariam para pagar por uma iniciação em massa em uma comunidade, disse Naasu Fofanah, uma empresária de Freetown e vice-presidente do progressista Partido da Unidade. Fofanah disse que há vários anos, quando estava aconselhando um ex-presidente, Ernest Bai Koroma, persuadiu a maioria dos líderessoweiaendossaraproibição de cortar crianças. Mas ativistas que buscam uma proibição total bloquearam a medida, disse.

A própria Fofanah foi submetida ao corte aos 15 anos e lembra da dor do procedimento real — do qual não teve nenhum aviso prévio. Mas ela também disse que era, no geral, um ritual positivo.

— Foi uma bela experiência paramim—disse,lembrandose de sua avó liderando dançarinos em comemoração à sua transição para a feminilidade, e sendo informada “que ninguém nunca vai falar de forma superior com você”. Não foi difícil conciliar o que foi feito com seu corpo, porque ela sabia que sua mãe, sua avó e suas tias haviam passado por isso. — Você aguenta e fica “Ok, está feito, vamos seguir em frente” —disse. Fofanah, que estudou a iniciação bondo para sua tese de mestrado na Universidade de Westminster, na Inglaterra, não levou suas próprias filhas para a iniciação. No entanto, ela sentiu que uma proibição geral não funcionaria.

— Se dizemos que, nessa prática, as mulheres não podem se expressar e dizer: “Tenho18anosou21ou30anos,é minha cultura, eu vou”, onde os direitos humanos se encaixam com meus direitos como mulher? —questionou.

Submissão ao corte do clitóris caiu nas faixas etárias mais baixas, mas ainda predomina

Proibição deu resultado no Egito e na Etiópia, mas não em Senegal e Somália

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2022-06-26T07:00:00.0000000Z

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