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Aborto agora só muito longe para milhões de mulheres nos EUA

Decisão da Suprema Corte de retirar garantia constitucional obriga muitas grávidas a viajar a estados onde prática é legal

Da AFP

Quando F. descobriu que estava grávida pela oitava vez, teve vontade de chorar. Dona de casa e dependente do marido, agonizou durante três semanas sobre o que fazer e sempre chegava à mesma conclusão: “Não posso ter esse filho.” A coisa mais difícil para ela foi descobrir como os Estados Unidos se tornaram hostis contra o aborto. — Que opções eles nos deixam? —perguntou a mulher de El Paso, no estado conservador do Texas. Depois que a Suprema Corte derrubou a garantia constitucionalaessedireitonasextafeira, a expectativa é que mais da metade dos estados torne o procedimento ilegal, obrigando as mulheres a viajar centenas de quilômetros para ir a estados progressistas que, devido ao sistema federal, podem manter regulamentos locais. Desde a decisão judicial, 11 estados já proíbem o aborto ou impõem severas restrições: Dakota do Sul, Wisconsin, Montana, Kentucky, Virgínia Ocidental, Ohio (a partir de seis semanas), Arkansas, Oklahoma,

Louisiana, Alabama e Texas. Ontem houve protestos em diversas cidades de todo o país contra a decisão da Suprema Crte.

SOZINHAS E ENVERGONHADAS

F., que pediu anonimato para não ser julgada, teve sorte de encontrar uma consulta a 45 minutos de casa. A Clínica de Saúde Reprodutiva das Mulheres funciona desde 2015 em Santa Teresa, uma pequenacidadenoNovoMéxico,na fronteira com o Texas. A localização é única. Fica em um estado onde o aborto é legalizado, mas a cinco minutos da

fronteira com o Texas, onde o procedimento já era proibido após a sexta semana, quando muitas mulheres ainda nem sabem estarem grávidas, e agora enfrentará maiores restrições.

Na sala de espera da clínica, a maioria das mulheres chega sozinha e aguarda em silêncio. As paredes em tons quentes contrastam com o uniforme fúcsia de algumas enfermeiras. Outros vestem camisetas comomapadoTexasealegenda: “A acusação é injusta.” As pacientes dizem que se sentem envergonhadas e julgadas em seus ambientes sociais, mas com máscaras cobrindo metade do rosto, ganham anonimato. Uma por uma, elas são chamadas por números e não por seus nomes. — A coisa mais difícil para mim foi decidir como chegaria aqui, porque sei que há muito estigma — diz Ehrece, uma engenheira de 35 anos que tem namorado e não quer começar um família agora por motivos profissionais, tendo viajado mais de 1.600 quilômetros de Dallas. — Pedi ao taxista que me deixasse no posto de gasolina

mais à frente e caminhei até aqui, para não saber para onde estava indo.

PROCESSO EM QUEM AJUDAR

Ehrece não exagera. A chamada “Lei do Batimento Cardíaco” em vigor no Texas desde setembro passado permite criminalizar qualquer pessoa que contribua para o procedimento, incluindo motoristas ou pessoal médico. — Eles não facilitam as coisas para você — lamentou a professora de ioga Emily, de 35 anos, que não quer ser mãe. — Antes de vir, você se preocupa que alguém te ataque fora da clínica ou que algum louco virá com uma arma. As mudanças não assustam o obstetra Franz Theard, 73 anos, responsável pela clínica, que faz abortos desde 1984, pouco antes de agressores nos EUA porem bombas em clínicas e matarem médicos. — Tivemos sorte que o estado do Novo México tenha leis muito liberais — disse ele à AFP. — Temos certificação para tudo, mas eles não nos perseguem. No Texas, tínhamos que relatar todos os detalhes de cada paciente mensalmente.

Theard não faz mais cirurgias, prescrevendo apenas pílulas abortivas, permitidas até a décima semana no Novo México. O procedimento custa US$ 700, com algumas exceções socioeconômicas. Como as enfermeiras e assistentes da clínica, Theard não teme retaliação, nem se intimida com as poucas pessoas que ficam do lado de fora de sua clínica todos os dias pedindo às pacientes que repensem sua decisão.

INDO PARA O MÉXICO

Lá dentro, o telefone não para de tocar. —Quantas semanas você tem? —pergunta ao telefone a assistente Rocío Negrete, continuando: —Temos consultas, mas só podemos atendê-la se for até a décima semana. O diálogo é repetido várias vezes ao dia. Negrete conta que, com as restrições, aumentou o número de pacientes de outros estados. Mas algumas mulheres, por medo ou razões econômicas, cruzam outra fronteira. A meia hora de carro, na cidade fronteiriça mexicana de Ciudad Juárez, algumas farmácias vendem sem receita um remédio abortivo, que também indicado para tratar úlceras. A caixa de 28 comprimidos custa entre US$ 20 e US$ 50. Outro remédio abortivo comum não está disponível abertamente, mas é oferecida de forma ilícita.

— As mulheres compram isso e não sabem como tomar — disse um farmacêutico na Ciudad Juárez com uma caixa de remédio nas mãos. —É um perigo, elas podem ter hemorragia, então é melhor consultar um médico. Em Santa Teresa, as mulheres, com diferentes contextos e circunstâncias econômicas, concordam que daí a importância da legalidade do procedimento e de acabar com o estigma.

— Se uma mulher quiser fazer um aborto, ela o fará. Haverá todo tipo de alternativas ilegais, com as quais uma mulher pode até morrer —diz Ehrece. —É exaustivo. Não faz sentido que em 2022 não possamos tomar nossas próprias decisões.

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2022-06-26T07:00:00.0000000Z

2022-06-26T07:00:00.0000000Z

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