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SOB O MESMO TETO

Programa de Nova York mantém famílias juntas ao retirá-las das ruas

EDUARDO GRAÇA Enviado especial eduardo.graca@oglobo.com.br

Pergunte nas ruas do Lower East Side e todos apontam sem titubear onde fica o castle (castelo, em inglês). Mas, já na fachada do prédio, erguido logo após a Segunda Guerra Mundial, um dos derradeiros exemplos de iniciativa pública relevante na construção de moradias populares em Manhattan, qualquer vestígio de conto de fadas desaparece. A estrutura foi afetada pelo furacão Sandy em 2012, e, desde então, assistentes sociais, educadores e moradores, reféns de verbas municipais, se desviam de goteiras e dependem de solução improvisada, com boiler externo, para garantir o aquecimento em uma cidade de invernos rigorosos. NolocalfuncionaumUrban FamilyCenter(UFC),criadoe gerido há cinco décadas pela Henry Street Settlement (HSS), iniciativa considerada modelo no atendimento a famílias em situação de rua, replicada desde então país afora. Numa manhã quente de fim de primavera, o castle abrigava 78 famílias sem condições de pagar aluguel nos limites da cidadedeNovaYork(município que,porlei,garanteo“direitoà moradia”, incluindo para imigrantes sem documentos). Outras 13, vítimas de violência doméstica, eram hospedadas em ala separada. Diretor de Serviços Sociais do UFC, o brasileiro Felipe Ferreira conta que nem recorda quando o centro sem fins lucrativos não registrou ocupação total. E que famílias permanecem em média um ano e meio no prédio,atéconseguirem,comajuda do HSS, habitação própria, tempo que vem aumentando. Oaluguelparapessoasnopiso da pirâmide social em Nova York é dificultado pelo reaquecimento do mercado imobiliário após a queda do ritmo da pandemia; o fim, em janeiro, da medida emergencial que proibiu despejos na cidade em tempos de Covid-19; e índices de inflação que não se registravam no país em quatro décadas. A realidade do castle ajuda a ilustrar o capítulo mais recente da crise de habitação na maior metrópole americana.

NÚMEROS CONTESTADOS

A prefeitura de Nova York estima que quase 49 mil pessoas (incluindo 15 mil crianças) vivem regularmente em alberguespúblicos.Onúmeroéflutuante, pois depende do rastreamento feito em quatro sistemas diferentes de apoio aos sem teto, e chegou a 61.187 pessoas em um dia de abril deste ano. Há aumento médio mensal crescente, na casa de 1%, desde novembro do ano passado. Outras 3.400 pessoas, de acordo com censo anual divulgado na semana passada, vivem nas ruas, parques e metrôsdacidade,umareduçãode 11% em relação ao mesmo período no ano passado. Mas estes números, e até os métodos de coleta de dados de pessoas em situação de rua, são questionados por ONGs críticas à frequência de ações de remoção de indivíduos e famílias em situação de rua na cidade desde a posse, no início do ano, do prefeito e exchefe de polícia Eric Adams, do Partido Democrata. De acordo com a ONG Coalition for Homeless, o número de pessoas vivendo nas ruas ou abrigos na cidade é o maior desde a Grande Depressão nos anos 1930, com aumento de 15% da ocupação média de instituições como o castle em uma década. A ONG também critica as remoções conduzidas por agentes sanitários e policiais que, só no mês de março, segundo o New York Times, ocorreram em 239 áreas de Nova York. A prefeitura afirma que, com as ações na virada da primavera, conseguiu transferir para abrigos 320 cidadãos que viviam em acampamentosimprovisados ou no metrô. Em janeiro, no auge do inverno, foram 88. —Remoção com uso policial nunca é opção para lidar com cidadãos sem condição de pagar aluguel. O poder público e a sociedade precisam entender que pessoas vivendo nas ruas ou em abrigos são resultantes de uma brutal crise de habitação —diz David Garza, CEO da HSS e um dos conselheirosdoprefeitonaáreade Habitação, que segue: — Esta crise diz respeito a todos nós. Políticas públicas não devem ser pautadas apenas pela demanda de quem traduz pessoasvivendoemcolchõesnasruas de seus bairros como desvalorização de imóveis ou percepção de mais insegurança. Em São Paulo, o mais recente censo cravou que quase 32 mil pessoas viviam em situação de rua em 2021, aumento de 31% em relação a 2019.

Grupos que trabalham com distribuição de alimentos no Centro, no entanto, estimavam, no fim do ano passado, que pelo menos 66 mil pessoas viviam nas ruas da maior cidadedaAméricadoSul.Aárea metropolitana de Nova York tinha pouco mais de 20 milhões de habitantes em 2020, enquanto na Grande São Paulo vivem pouco mais de 22 milhões de pessoas.

Um dos primeiros modelos criados nos EUA exclusivamente para famílias, e sem separação por gênero, os UFCs inovaram ao abrigá-las em espaços com cozinha própria e serviços sociais 24h. O GLOBO entrou no único apartamento vago (mas já sendo preparado para a chegada de uma família) do castle na manhã em que visitou o abrigo. Uma das três unidades do sexto e último andar, sem elevador, era simples e limpa, com dois quartos e banheiros, ventilador,camadecasaebeliche,apta para receber uma família grande. As crianças precisam ser matriculadas em escolas públicas e fazem no local atividades extracurriculares.

Parte do orçamento anual — em 2021, a HSS recebeu US$ 12 milhões da prefeitura para administrar cinco unidades no Lower East Side, e em média arrecada outros US$ 300 mil de doadores privados —é destinada a um programa pioneiro de parceria com as famílias após a transferência do abrigo para a residência alugada, que pode durar até um ano e meio. Há acompanhamento médico e psicológico, crítico em um país sem saúde pública universal, e auxílio com tarefas simples, mas muitas vezes incomuns para quem há muito está distante da rotina de umacasa,comopagarcontase fazer supermercado.

PARCERIAS SÃO IMPORTANTES

Diretora de Operações do castle, LaGene Wright, há 16 anos no HSS, mora em um dos apartamentos, com sua filha de 14 anos, desde 2017.

— Faz diferença o assistente social viver na comunidade a que serve. Para minha filha, tem sido ótimo, a mantém com os pés no chão, ela diz que mora no castle, ninguém sabe o motivo, e ela se orgulha disso. Quando uma família chega, eles sabem que meu interesse em tornar o ambiente saudável e seguro é tão grande que a pessoa que mais amo vive aqui também. Os resultados são palpáveis— conta.

David Garza crê que NYC, ao contrário de metrópoles como São Francisco, só evitou o caos absoluto para pessoas em situação de rua durante a pandemia por conta do arcabouço erguido nas últimas décadas e as parcerias estabelecidas pela prefeitura com a academia e organizações sem fins lucrativos. E, frisa, por conta das vitórias recentes dos movimentos sociais na Justiça, como o direito à moradia. Todos antídotos contra a inação do Legislativo local e a ausência de projetos de habitação popular em nível nacional. Mas ele alerta: — Se o cenário econômico piorar, entraremos em colapso. Estamos por um fio. Não há solução sem um projeto que atraia empreendedores a investir em moradias populares.

“Se o cenário econômico piorar, entraremos em colapso. Estamos por _ um fio” David Garza,

CEOdaHSSe conselheiro para Habitação do prefeito de NYC

“As famílias sabem que meu interesse em tornar o ambiente saudável e seguro é tão grande que a pessoa que mais amo vive _ aqui também” LaGene Wright, diretora e moradora do castle

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2022-06-26T07:00:00.0000000Z

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