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O QUE JACK LONDON JÁ TERIA FEITO?

MARTHA BATALHA segundocaderno@oglobo.com.br

Ainda é janeiro, o mês ideal para evocar Jack London o escritor que passou os últimos anos de vida numa casa em Sonoma, na Califórnia. Se bem que “casa” e “escritor” são simplificações. O lugar é tão extenso que se tornou parque e museu, e Jack London foi marinheiro, explorador, correspondente de guerra, líder socialista, fazendeiro e muito mais. Quando estive no museu e assisti à videobiografia, pensei: gente, é muita conquista e reviravolta. Jack London não é um homem, mas um seriado do Netflix. Ou uma instituição, espécie de National Geographic bípede com polegares opositores.

Uma breve bio: Jack nasceu pobre. Entregou jornais, limpou bares, trabalhou numa fábrica e extraiu ostras ilegalmente. Conhecia tão bem o mar de São Francisco que foi contratado pela patrulha marítima para combater quem extraía ostras. Se fez marinheiro, e numa viagem pelo Pacífico guiou o barco durante um tufão. Protestou em Washington e foi preso por vagabundagem. Partiu para o Alasca em busca de ouro, voltou ainda pobre e com escorbuto. Tudo antes de completar 20 anos.

Ele queria ficar rico, mas só acumulou experiências. Decidiu transformá-las em literatura. Foi recusado centenas de vezes antes de publicar o primeiro livro. Vendeu milhões de cópias e se tornou o autor americano mais bem pago do início do século XX. (O filme “O chamado da floresta”, com Harrison Ford, baseia-se em um de seus romances). Ele descobriu o surfe no Havaí, apoiou a revolução mexicana, cobriu aguerra da Rússia contra o Japão, comprou terras, adotou práticas orgânicas, publicou 49 livros em 17 anos.

Jack London foi o precursor dos influencers que lucram vendendo nas redes o estilo de vida e as narrativas de aventuras para o resto de nós, atrelados a salários, prestações, compromissos. É dessas pessoas que desejam marcar o mundo pelo que produzem, embora agrande contribuição não tenha sido o resultado, mas o processo. A maior criação de Jack London foi a própria vida, ou a forma intensa, curiosa e apaixonada com que viveu. Pensar no tanto que fez é inspirador. Funciona como a energia criativa presente nas cartas de Van Gogh, ou nesta simples frase de Michelangelo para um aprendiz: “Desenhe, Antônio, desenhe. E não perca tempo.”

Ele morreu aos 40 anos, no pequeno quarto anexo ao escritório. Sobre a cama estreita e simples há um varal, onde ele pregava pedaços de papel com ideias. No escritório há um cofre para guardar os originais (proteção contra incêndio). Escritório e quarto não parecem reais, mas o habitat de um personagem inverossímil, um escritor que rodou o mundo e acordava às cinco da manhã para escrever mil palavras e depois trabalhar oito horas no campo. A causa da morte foi o estilo de vida: Jack era alcoólatra e comia carne praticamente crua. Nas viagens se medicava com gotas de cocaína para dor de dente, ópio para dores gerais, heroína para tosse e mercúrio para machucados. O mercúrio sobre feridas abertas contaminou o organismo e complicou a infecção renal que, junto à overdose de morfina, o matou em 1916.

Janeiro é o mês dos novos começos, em que todo mundo pode ser um pouco do melhor de Jack London. Realizar os pequenos e grandes projetos, e no caso de inércia pensar: o que Jack London faria? Se bem que é mais preciso dizer: o que Jack London já teria feito? É o meio da terceira semana, de um ano em branco e à espera de ser preenchido.

SUA MAIOR CRIAÇÃO FOI A PRÓPRIA VIDA, OU A FORMA INTENSA, CURIOSA E APAIXONADA COM QUE VIVEU. PENSAR NO TANTO QUE FEZ É INSPIRADOR

Segundo Caderno

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2022-01-19T08:00:00.0000000Z

2022-01-19T08:00:00.0000000Z

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