Infoglobo

O nacionalista sérvio que instiga a secessão na Bósnia

Integrante da Presidência tripartite da federação multiétnica criada nos anos 1990 e negacionista do genocídio de Srebrenica, Milorad Dodik confraternizou no ano passado com o tenista antivacina Novak Djokovic

BANJA LUKA, BÓSNIA

Onacionalista sérvio Milorad Dodik, membro da Presidência tripartite da Bósnia, foi elogiado pelo governo de Bill Clinton em 1998 como uma “lufada de ar fresco” nos Bálcãs. Agora, o enviado especial do presidente Joe Biden para a região, Gabriel Escobar, o chama de uma ameaça que “apunhala o coração de Dayton” —o acordo de paz costurado pela diplomacia americana em 1995 que selou o fim da guerra civil iniciada na antiga república iugoslava em 1992 e criou um frágil Estado bósnio multiétnico.

Foi com Dodik que a estrela do tênis da vizinha Sérvia, Novak Djokovic, número um do ranking, foi visto cantando em um casamento na Bósnia em setembro —quatro meses antes de ser impedido de disputar o Australian Open por se recusar a se vacinar contra a Covid-19. Na ocasião, Djokovic recebeu de Dodik a Ordem da República, uma condecoração da República Sérvia da Bósnia, uma das duas entidades que formam o país, ao lado da Federação da Bósnia e Herzegovina.

POLÍTICA DISFUNCIONAL

Diferentemente de Djokovic —também já fotografado com um ex-chefe paramilitar que participou do genocídio de muçulmanos bósnios na cidade de Srebrenica, em julho de 1995 —a posição atual dos EUA sobre Dodik não é nada festiva.

O Acordo de Dayton interrompeu o conflito que deixou cerca de 140 mil mortos, mas estabeleceu um sistema político disfuncional, com uma autoridade central fraca em que diferentes grupos dividem o poder. O trio de presidentes eleitos é composto por Dodik, que representa os sérvios; Sefik Dzaferovic, que representa os muçulmanos; e Zeljko Komsic, um croata. Por mais de uma década, Dodik vem defendendo que a República Sérvia da Bósnia separese do resto do país, mas sua posição vem se tornando cada vez mais acirrada.

A Bósnia tem sido há muito tempo um barril de pólvora. Foi em Sarajevo, sua capital, que um nacionalista sérvio adolescente desencadeou a Primeira Guerra Mundial ao assassinar o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando em junho de 1914. Foi também lá que os discursos aparentemente insanos de um psiquiatra sérvio, Radovan Karadzic, pressagiaram uma onda de três anos de derramamento de sangue na década de 1990. As guerras que dividiram a Iugoslávia atraíram

Dodik e muitos companheiros negam crimes de guerra e se dizem vítimas

bombardeios e soldados da Otan, a aliança militar ocidental, e criaram uma cisão entre a Rússia e o Ocidente que permanece até hoje.

Agora, os EUA e a União Europeia, à qual a Bósnia aspira se juntar, estão desesperados para impedir que a nova crise se transforme em conflito. A Rússia, que quer impedir que a Bósnia entre no bloco europeu ou na Otan, já se aproxima de Dodik.

Recentemente, o líder sérvio anunciou a criação de uma agência própria de medicamentos e a retirada da República Sérvia da Bósnia da vigilância sanitária do governo central. Ele também ameaçou sair das Forças Armadas da Bósnia e criar um exército próprio. Além disso, indicou a intenção de sair da agência fiscal, da de Inteligência e do Judiciário do Estado multiétnico, defendendo sua “dissolução pacífica”.

—Nada será pacífico — alertou Dzaferovic, que participa da Presidência representando os muçulmanos.

O relatório de outubro do alto representante da ONU para a Bósnia, o alemão Christian Schmidt, descreveu a situação como “a maior ameaça existencial” à sobrevivência do país desde sua criação.

Na Europa, a resposta às provocações de Dodik foi mista. Alemanha e Reino Unido discutem sanções, mas o líder autoritário da Hungria, Viktor Orbán, visitou recentemente a capital da região sérvia, Banja Luka, e prometeu a Dodik vetar quaisquer sanções da UE.

Muitos bósnios veem as ações de Dodik como prova de que os sérvios nunca deveriam ter sido autorizados a manter seu próprio território, na região onde cresceram homens como Ratko Mladic, que foi condenado em um tribunal especial em Haia pelo massacre de Srebrenica e outras atrocidades.

ACENDENDO O FOGO

Mas Dodik e muitos de seus companheiros ainda negam os crimes de guerra e se descrevem como vítimas. Afirmam que os sérvios bósnios vêm sendo injustamente perseguidos após uma decisão do antecessor de Schmidt, em julho de 2021, que proibiu a negação do genocídio.

Em outubro, Dodik alertou que os sérvios na Bósnia “se defenderiam com nossas forças, se necessário” e disse que “nossos amigos” —ou seja, a Rússia e a Sérvia — repeliriam qualquer esforço da Otan para controlá-lo. A Sérvia, no entanto, não demonstrou interesse em repetir seu papel nos anos 1990, quando enviou armas e grupos paramilitares para apoiar forças sérvias na Bósnia.

Também não está claro ainda o quanto a Rússia apoia Dodik. Em dezembro, ele voltou de uma visita a Moscou alegando que havia recebido promessas de apoio do presidente Vladimir Putin. Mas o Kremlin esperou dias antes de confirmar o encontro.

A grande questão é se as ameaças de Dodik são reais ou são principalmente teatro político para empolgar sua base nacionalista antes das eleições de outubro.

—Ele de fato provavelmente não sabe aonde tudo isso vai levar —disse Schmidt.

Já Branislav Borenovic, líder de oposição, disse que “Dodik sobrevive no conflito’’:

—Ele odeia estabilidade porque vai ter que explicar por que vivemos como vivemos —disse, acrescentando que Dodik “joga com as emoções do povo e não se importa com as consequências”.

Mesmo que Dodik esteja apenas fazendo política, disse Borenovic, suas diatribes estão estimulando as paixões a um nível perigoso:

—Em um país de três milhões de pessoas, é sempre possível encontrar alguns idiotas para acender o fogo.

Mundo

pt-br

2022-01-19T08:00:00.0000000Z

2022-01-19T08:00:00.0000000Z

https://infoglobo.pressreader.com/article/281938841286603

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.