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BANDEIRANTES, VATAPÁ E MULHER BOA

NO ‘BRAZIL’ DE UPDIKE, TODO MUNDO INTERAGE COM TOTENS DO IMAGINÁRIO DO PAÍS: ÍNDIOS, GARIMPEIROS, CORRUPTOS, FAVELADOS, FEIJOADA, CACHAÇA

MARTHA BATALHA segundocaderno@oglobo.com.br mucho loco.

Vou falar bem do livro mais questionável que li recentemente: “Brazil”, escrito em 1994 por John Updike, um dos quatro escritores americanos a ganhar duas vezes o prêmio Pulitzer.

Segue a trama: Tristão, negro, potente, pobre e favelado, conhece na praia Isabel, branca, bela e rica. Ele dá um anel para ela, que retribui levando-o para uma cobertura em Ipanema, servindo-lhe acarajé e tomando com ele um banho, no qual Tristão sente “a sua castanha se transformar numa banana e depois em um aipim maduro”. Apaixonam-se. Isso não vai dar certo, diz Maria, empregada de Isabel, comendo um caruru.

Temendo o pai de Isabel — um poderoso político de Brasília — o casal se esconde na favela, onde dormem num quartinho com outros sete familiares de Tristão e jantam angu, experiência que fascina e alegra Isabel. Fogem para São Paulo, onde transam loucamente num hotel (incluindo ménage com o mensageiro). Um dia, e porque São Paulo é uma cidade do tamanho da minha vaga de garagem, Tristão encontra o irmão na esquina e aceita um convite para jantar. É uma cilada: homens armados estão no local e levam Isabel para Brasília. Resignado, Tristão bebe cachaça e come feijoada com os moços maus.

Dois anos se passam. Tristão se torna metalúrgico numa fábrica de fuscas. Isabel se torna estudante profissional. Bate a saudade, ele busca por ela. Fogem novamente, e, como o Brasil é um país sem possibilidades, decidem que o único lugar seguro é Serra Pelada. Ali Tristão se torna garimpeiro, e Isabel, que nunca fez nada além de transar e estudar, descobre ser o primeiro mais útil junto ao povão do garimpo, e se prostitui.

Tristão encontra a maior pepita de Serra Pelada, é perseguido e eles fogem para a selva. São capturados por bandeirantes em andrajos (e bote andrajo nisso, estamos nos anos 1990). Tristão é obrigado a fazer canoas, e Isabel se torna a mulher do chefe. É quando ocorre certa magia no mato, e eles TROCAM DE COR. Livram-se dos bandeirantes, e procedem com nova temporada de sexo Voltam para Brasília, onde o pai de Isabel a reconhece e perdoa, achando só que a filha pegou um bronze no mato, e acolhe com alegria o genro ariano. Termina com o casal indo passear no Rio e (só podia ser no Rio) Tristão é assaltado, esfaqueado e morre no calçadão.

Já no segundo capítulo eu me fiz a mesma pergunta que a escritora Barbara Kingsolver se fez, ao resenhar o livro para o New York Times: “Como Updike conseguiu se safar?” São muitos os preconceitos, absurdos e clichês. No “Brazil” de Updike, todo mundo come vatapá, transa muito e interage com totens estilizados do imaginário do país: bandeirantes, índios, garimpeiros, corruptos, favelados, domésticas, mulher boa, fuscas.

Eu poderia seguir, evocando apropriação cultural, a arrogância do escritor branco americano, o poder da sólida máquina editorial em língua inglesa (a tiragem inicial de “Brazil” foi de 75 mil exemplares). Mas prefiro falar sobre o lado positivo de ter lido um livro medíocre de um escritor consagrado: Updike quis escrever uma história sobre o Brasil, e escreveu. Essa determinação, e capacidade de criar, é fundamental para qualquer escritor. Quando eu penso em “Brazil”, penso no desejo de fazer literatura, e que mesmo um Pulitzer pode cometer erros.

Segundo Caderno

pt-br

2021-12-08T08:00:00.0000000Z

2021-12-08T08:00:00.0000000Z

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