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A FORÇA DO COTIDIANO DIANTE DO EXTRAORDINÁRIO

KRISTINA MICHAHELLES

Um ensaio de Stefan Zweig até agora inédito em português, cujo original de sete páginas datilografadas está guardado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vem a público 70 anos depois e fascina pela sua atualidade. Escrito em 1940 e publicado pela primeira vez pela Harper’s Magazine de Nova York em fevereiro de 1941, “Os pescadores à margem do Sena” (Die Angler an der Seine) discute a nossa resiliência em relação às tragédias que se sucedem no mundo e propõe refletir sobre a relação do indivíduo com a História.

Zweig parte do episódio de um grupo de pescadores concentrados em seus anzóis e alheios à agitação da turba, enquanto o rei Luís XVI é decapitado pouco adiante na guilhotina instalada na Praça da Concórdia. Questiona a aparente “indiferença egoísta”, mas logo constata que, “em meio ao extraordinário, o cotidiano continua”. O autor evoca a imagem de um camponês arando a terra enquanto as bombas explodem ao redor, semeando destruição. E lembra a comoção em torno do afundamento do submarino britânico Thetis em 1939, em contraste com a passividade e a anestesia das emoções à medida que ocorrem dezenas de outras catástrofes semelhantes durante a guerra.

Abalroados todos os dias pela avalanche de tragédias ao redor do globo, é impossível não nos identificarmos com o texto e nos questionarmos sobre a nossa própria indiferença e nossa incapacidade de “acolher mais do que uma determinada medida de infelicidade”, explicadas pelo escritor austríaco como resultado de uma espécie de lei natural.

Quando chegou ao Brasil, exilado, em setembro de 1941 para se instalar no “país do futuro”, Stefan Zweig deu o original de presente ao então diretor da Biblioteca Nacional, Rodolfo Garcia, pai do falecido jornalista Luiz Garcia do GLOBO. O ensaio faz parte dos últimos escritos dele, que traem a depressão com a guerra e a dor do adeus à Europa querida que se consumia em chamas. Tanto a fábula dos pescadores quanto “O livro do xadrez”, metáfora sobre a brutalidade da guerra, e o ensaio sobre Montaigne — escritos já na última morada do casal Stefan e Lotte Zweig, na Rua Goncalves Dias 34, em Petrópolis — fornecem chaves preciosas para quem quer entender os motivos do suicídio do casal.

A Casa Stefan Zweig de Petrópolis, que completa seus primeiros 10 anos em 2022 com a missão de divulgar os ideais humanistas e pacifistas do escritor austríaco, publica o texto inédito para celebrar os 140 anos de seu nascimento (em Viena, no dia 28 de novembro de 1881) e lembrar os 80 anos de sua morte, que serão completados em fevereiro de 2022. Junto com outros produtos, como o “Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil”, lançado em maio deste ano, e a série televisiva “Canto dos Exilados”, propõe-se a encorajar as novas gerações a refletir sobre o passado e agir sem fanatismo, mas também sem a indiferença dos pescadores.

Ter empatia: mitfühlen, sentir o Outro, exercitar a tolerância, integrar e não excluir. Para, nas palavras de Zweig, “construir um mundo novo e melhor em vez de olhar sem parar para as ruínas daquele que desmorona”.

Kristina Michahelles é diretora executiva da Casa Stefan Zweig de Petrópolis e traduziu 12 títulos de Stefan Zweig para o português, entre eles “Brasil, um país do futuro” e a autobiografia “O mundo de ontem”

EM ENSAIO ATÉ HOJE INÉDITO EM PORTUGUÊS, STEFAN ZWEIG DISCUTE A INDIFERENÇA E A RESILIÊNCIA HUMANAS DIANTE DE TRAGÉDIAS, MOSTRANDO A ATUALIDADE DE SEU PENSAMENTO

Segundo Caderno

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2021-12-08T08:00:00.0000000Z

2021-12-08T08:00:00.0000000Z

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