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Governo libera Prouni a alunos da rede privada

Especialistas criticam mudanças defendidas por escolas privadas

DANIEL GULLINO, PAULA FERREIRA E PÂMELA DIAS brasil@oglobo.com.br BRASÍLIA E RIO

O presidente Bolsonaro editou medida provisória que estende o Prouni a estudantes de baixa renda não bolsistas de escolas particulares. Programa era restrito a alunos da rede pública ou com bolsa em instituições privadas. MP flexibilizoutambém regulação de entidades filantrópicas. Especialistas criticaram mudanças.

Opresidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que libera a participação no Programa Universidade Para Todos (Prouni) de alunos de baixa renda de escolas privadas que não tiveram bolsa. Antes, a participação só era permitida para quem estudou em escola pública ou teve bolsa integral em instituições particulares. Dirigentes de entidades de ensino privado elogiaram a MP, mas as alterações foram criticadas por especialistas em educação.

O texto foi publicado ontem no Diário Oficial da União. Uma MP tem validade imediata, mas precisa ser aprovada pelo Congresso em 120 dias para virar lei. Os parlamentares podem fazer alterações.

De acordo a SecretariaGeral da Presidência, as mudanças buscam “ampliar a abrangência das condições de acesso às bolsas de estudo Prouni”, alcançando estudantes do ensino médio privado “que foram pagantes ou bolsistas parciais”.

Foi revogado na MP o artigo que determinava que a instituição de ensino superior somente poderá ser considerada entidade beneficente de assistência social se oferecer, no mínimo, uma bolsa de estudo integral para estudante de curso de graduação para cada nove estudantes pagantes. Segundo especialistas, a medida acaba com qualquer tipo de regulação das entidades filantrópicas.

— Elas tinham que investir 20% da movimentação financeira em gratuidade, conceder bolsas e respeitar critérios de funcionamento. O resultado é que o credenciamento dessas entidades e a contrapartida delas fica praticamente livre — explica Daniel Cara, professor da faculdade de Educação da USP.

A MP modifica o cálculo de vagas de cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência. A conta para determinar a quantidade

“As mudanças são uma bandeira há quase 10 anos”. Celso Niskier, Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior

de bolsas deve ser feita com base no percentual mínimo de pessoas autodeclaradas pretas, pardas ou indígenas; ou de pessoas com deficiência, separadamente, na população de cada unidade federativa do país. Na regra anterior do Prouni, o cálculo era feito a partir da soma de todos esses grupos na população.

— As mudanças não têm lógica, nem existem ferramentas hoje para ordenar as pessoas. As vagas que sobram hoje são porque não se fazem mais chamadas — critica Mateus Prado, assessor da ONG Educafro.

Grupos ligados a escolas particulares e ao ensino superior privado comemoraram a medida.

— As mudanças são uma bandeira há quase 10 anos. O setor vem apresentando sugestões para que as vagas possam ser adequadamente preenchidas e uma das coisas que limitavam isso era exigir que fosse estudante de escola pública o tempo inteiro ou com bolsa integral na escola privada —disse Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior.

O presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Bruno Eizerik, rebate as críticas de que programa ficará mais desigual com a MP:

— Tínhamos famílias que, mesmo com baixa renda, faziam esforço para colocar seu filho na rede privada, e esses alunos eram alijados.

O MEC poderá dispensar a apresentação da documentação que comprove a renda familiar mensal do estudante, “desde que a informação possa ser obtida por meio de acesso a bancos de dados de órgãos governamentais”. Segundo a Secretaria-Geral da Presidência, o objetivo da nova norma é livrar o estudante “da obrigação de comprovar situação que possa ser aferida diretamente por meio de informações disponíveis em bases de dados públicas”.

Em sua conta no Twitter, Fernando Haddad, que era ministro da Educação quando o programa foi criado, disse que “Bolsonaro começa a destruir” o Prouni com a MP. “A Câmara deveria devolver para o Planalto esse lixo”, publicou Haddad, candidato à Presidência pelo PT em 2018.

Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, contesta o argumento da ociosidade de vagas e lembra que estudantes de baixa renda de escolas privadas já contam com o Fies para entrar na universidade.

— Existem alunos em escolas privadas com baixa renda, mas para isso há o Fies, no qual a pessoa consegue financiar a faculdade, assim como conseguiu arcar com a despesa escolar — afirma Claudia, para quem a MP responde ao lobby do setor privado de educação.

A especialista destaca que o número recorde de evasão no Enem 2021 teria causado um prejuízo para instituições de ensino privado que, em troca das bolsas oferecidas, têm desconto de impostos federais. Outro problema apontado por Claudia, ex-secretária municipal de Educação do Rio, é o afrouxamento das regras para comprovação de renda, que pode favorecer fraudes:

— As rendas mudam e as pessoas podem não declarar tudo o que ganham.

“ME SINTO PARA TRÁS”

O estudante de escola pública João Pedro Borges, de 19 anos, recebeu a notícia com temor em Ipiaú, no interior da Bahia. Borges viu a mudança como um obstáculo. Ele acredita que alunos de escolas particulares tiveram mais oportunidades de estudo na pandemia.

— Terminei a escola ano passado, totalmente no ensino a distância. Estudei sozinho este ano porque não fui aprovado na universidade em 2020 e agora me sinto para trás, mais uma vez. Quem estudou em escola particular vai tirar uma nota bem melhor para ser aprovado —afirma.

Segundo João Pedro, a família não tem como pagar o curso de Ciência da Computação que quer fazer. As únicas chances de ser aprovado em uma universidade pública são pelo Prouni ou pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu):

— A nota de corte para a universidade pública é mais de 700. No Prouni a média fica em torno de 600. Para alguns não é tanta diferença, mas para quem tem o ensino defasado conta muito.

Beneficiada pelo antigo modelo do Prouni, a advogada Tamires Sampaio, de 28 anos, diz que permitir que jovens de escolas particulares tenham acesso ao programa vai prejudicar estudantes negros e pobres. Aprovada na Mackenzie em 2015, a paulista afirma que só conseguiu cursar Direito graças à bolsa integral.

— Eu só tinha perspectiva de Fuvest (vestibular da USP), em que não passei, e o Enem, que consegui passar através do Prouni. Naquela época, a minha mensalidade custava R$ 1,2 mil. Imagina quanto deve estar hoje? —questiona.

Tamires era uma das únicas três pessoas negras numa turma de 80 alunos. Após ouvir que pessoas como ela regrediam a qualidade da instituição, passou a se engajar no movimento estudantil. Publicou um livro e obteve um mestrado.

—Tudo o que eu tenho hoje começou no Prouni. Apesar de ter sido uma entre três negros, pelo menos éramos três. Poderia ser nenhum. Todos entraram pelo programa.

“Existem alunos em escolas privadas com baixa renda, mas para isso há o Fies” Claudia Costin, Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV

MP modifica o cálculo de vagas para negros, indígenas e pessoas com deficiência

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