Infoglobo

Na aldeia dos mortos

ROBERTO DAMATTA blogs.oglobo.globo.com/opiniao editoria.artigos@oglobo.com.br — Na minha estada com os nativos panaremkãs isolados no alto Rio Ipavuna

Quando eu, jovem destemido, tentei estudar a vida dos índios timbiras, nos anos 60 e 70, fiquei intrigado com a aldeia dos mortos. Para eles, era uma gigantesca comunidade, com o mesmo formato circular da aldeia dos vivos, habitada por “almas” e situada no poente — o lugar da misteriosa escuridão noturna. Na minha cabeça, a aldeia era, é claro, uma imagem do outro mundo tal como os nativos o concebiam.

A diferença é que um dos meus professores mais confiáveis — um dos meus amigos e dos mais sensíveis e inteligentes instrutores, hoje falecido e, portanto, já vivendo nessa comunidade dos mortos — me disse que sabia como chegar a esse local onde os mortos moravam e viviam uma vida muito mais longa que a nossa.

Um estilo de viver, aliás, em que não havia nenhum julgamento moral, mas nada ali tinha a paixão que nos acompanha neste mundo dos vivos, animado por sentimentos, preocupações e desejos intensos.

Entendi que, diferentemente da temível teologia reformista, conforme assinalada por Max Weber, os apinajés, parte do povo timbira, não tinham nenhuma ideia (ou ideal) de “salvação”, traço com que eu muito simpatizava.

Ademais, tal ausência de julgamento dos mortos revelava que a vida neste mundo não era uma prova ou teste para o outro. Havia ética, mas não a noção de pecado ou de julgamento final, o que mostrava uma sociedade ajustada a si mesma, sem as desigualdades que testemunhamos.

No mundo dos mortos apinajés, tudo era igual a este nosso mundo, mas muito mais tênue. E a metáfora que meu professor apinajé de teologia usava para definir a diferença era o sangue. O sangue dos vivos é vermelho; o dos mortos, dizia ele com o fervor inabalável dos crentes, era verde-amarelado. Por isso, os mortos jamais ficavam com fome, raiva ou inveja. Enfim, era um mundo igual ao nosso, mas tão leve como a saudade dos entes queridos que nele residem.

Numa manhã de julho, um jovem etnólogo americano da Universidade da Nova Caledônia passou pela aldeia. Foi recebido com alegria por meu companheiro Melatti e por mim e, depois de comermos um pedaço de porco assado com farinha, ele contou:

[um dos afluentes do Praia Alta, que banhava nossa aldeia], lá, vejam vocês, eu visitei a aldeia dos mortos e nela vivi por três ou quatro semanas.

Meu colega me olhou como quem diz: só nos faltava essa... Mas o rapaz (seu nome era Angel Dove) continuou:

“É verdade, my friends, a aldeia fica mesmo no poente, é muito longe, mas, graças à poção amarga de um curandeiro, lá cheguei.

Passamos — prosseguiu ele — por algumas fronteiras tipo ‘Divina comédia’, pois atravessamos um vasto lamaçal apinhado de enormes mosquitos, depois veio um cipoal coroado de espinhos que me cortaram braços e pernas, mas, finalmente, enxergamos numa depressão o círculo perfeito das casas que todos conhecemos.

Quando me dei conta de mim mesmo e procurei os mortos, vi que estava dopado e que tudo foi uma fantasia, provavelmente promovida pela beberagem. A aldeia dos mortos é tão falível quanto nossas crônicas...

Mas o que vi nitidamente, asseguro, foi como meu guia tremia e estava com os cabelos em pé, como se tivesse levado um daqueles choques elétricos. Mal me deixou, fugiu. Só como o peregrino de Dante — prosseguiu Angel Dove —, desci a pequena elevação e entrei na aldeia. Logo fui percebido por almas de cachorros que ladravam e por meninos fantasmas que deram o alarme: chegou um kupen (estrangeiro )! E repetiram ‘estrangeiro, estrangeiro’, porque eu não era um deles e, além disso, era um vivo!

Fiquei entre eles e vi que viviam exatamente como os vivos. Ali não havia nem punição nem sofrimento, apenas uma calma que sugeria aceitação. Fica-se nessa aldeia, aprendi, até morrer novamente e, então, a alma da alma entra num toco de pau ou num animal. Achei belo esse modo paulatino de acabar a vida. Era um singelo materialismo que nós só descobrimos com um barulho que até hoje assusta pela nossa presunção de imortalidade.

Ali —disse Dove—, vivi a melancolia e senti o que significava nostalgia. Eu fiquei assim”, disse ele, mostrando seu corpo macérrimo.

Em seguida, tombou na rede em que estava sentado e desmaiou.

Soubemos que acabou num pavilhão psiquiátrico.

Opinião

pt-br

2021-12-08T08:00:00.0000000Z

2021-12-08T08:00:00.0000000Z

https://infoglobo.pressreader.com/article/281599538792167

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.