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DONO DO MUNDO DAS NOVELAS

PATRÍCIA KOGUT kogut@oglobo.com.br

Éimpossível falar da História da teledramaturgia brasileira desde os anos 1970 — quando ela floresceu e ganhou a dimensão que tem hoje — sem citar Gilberto Braga. Invariavelmente lembrado como um mestre na construção de vilões e vilãs, ele representou muito mais. Deixa uma obra completa, rica e abrangente, semp remarcada pela assinatura pessoal: o texto elegante, preciso e culto, muitas vezes pontuado com fina ironia. Tinha um olhar para todos os aspectos de suas criações e opinava inclusive nas trilhas sonoras, escolhendo muitas das canções. Sua capacidade de se comunicar com o público e de eletrizá-lo era inigualável. Por tudo isso, dizer que ele foi o mais importante autor da nossa televisão ganha status de axioma.

Gilberto adorava cinema. Seu texto se abria constantemente para citações de cenas famosas de filmes. Trabalhou anos como professor de francês e, aqui no GLOBO, atuou como afiadíssimo crítico de teatro. Essa bagagem se traduziu em deliciosos momentos. Quem viu “Vale tudo”, em 1988, se lembra dos diálogos de Celina (Nathalia Timberg) e sua irmã Odete (Beatriz Segall) cheios de frases em francês. A Tijuca e Copacabana, onde viveu, ambientaram alguns de seus mais famosos enredos. Foi um cronista do Rio, mas com os dois pés no cosmopolitismo.

Nada dele era provinciano, embora soubesse se conectar com os pequenos universos e se dirigir ao espectador como se estivesse conversando com um vizinho. Disse, em entrevista ao Projeto Memória Globo, que no início da carreira acreditava que a televisão seria algo transitório. Sua intenção era trabalhar com cinema, que acreditava ser “maior”. Pois, ironia, foi responsável por enobrecera televisão e ali entrou logo para um time muito seleto, o de autores das novelas das oito. Fez isso com tramas inovadoras, em que procurou ao mesmo tempo estar em sintonia coma sociedade, retratando-a com crueza, e fazê-la avançar para um mundo com mais direitos.

As mulheres livres, independentes e em busca de igualdade apareceram fortemente em Gilberto; a corrupção endêmica no Brasil ficou à mostra, como um nervo exposto; já na luta pelo respeito aos direitos dos gays percorreu um caminho mais tortuoso, mas que, ao final, resultou em avanços, para além mesmo do que o público médio queria aceitar: do Inácio (Dennis Carvalho) de “Brilhante”, ao Gilvan (Miguel Roncato), de “Insensato coração”, ele rompeu tabus. Mesmo se ao custo de rejeição, como aconteceu com o beijo de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em 2015 em “Babilônia” (escrita em parceria com Ricardo Linhares).

Gilberto começou em 1972 com um Caso Especial e logo assinou sua primeira novela, uma adaptação da obra de José de Alencar para as 18h. “Senhora” trazia Norma Blum e Claudio Marzo nos papéis principais. No mesmo ano veio “Helena”, baseada na obra de Machado de Assis, estrelada por Lúcia Alves. Ele dizia que ficava chateado de ser chamado de “adaptador”. Mas antes de mostrar sua força com uma produção original — o que veio com “Dancin’ Days”, em 1978 — fez “Escrava Isaura” (1976). Durante anos, essa trama liderou as vendas internacionais da Globo. Por causa dela, Lucélia Santos é até hoje um ídolo na América Latina e na China. Rubens de Falco, o vilão, foi tão marcante que “Leôncio” virou sinônimo de maldade.

Mas, voltando a “Dancin’ Days”, já na sua estreia no horário nobre, Gilberto mostrou toda a capilaridade de seu trabalho. A novela é até hoje considerada um marco. Pelo texto, em primeiro lugar, claro. Mas também pelo ambiente das discotecas, pela música, pelas gírias que ele lançou (“tipo assim” nasceu ali) e pela moda. A parceria com Dennis Carvalho e com a figurinista Marília Carneiro —que se repetiu muitas vezes — foi feliz demais. Por causa de Gilberto, as meias de lurex entraram em moda, a minissaia voltou, e tantos outros comportamentos foram adotados pelo público. Tudo isso segue atual. Tanto que agora, com a reprise de “Paraíso tropical”, os espectadores se reapaixonaram por Bebel (Camila Pitanga) e Olavo (Wagner Moura). E aquela expressão “Cachorra!” está de novo nas bocas. É Gilberto Braga sendo eterno.

GILBERTO BRAGA CRIOU VILÕES INESQUECÍVEIS, DEU UMA BANANA PARA OS TABUS, EXPÔS COM IRONIA AS ENTRANHAS DA SOCIEDADE E CONSTRUIU UMA OBRA COMPLETA, RICA E ETERNA

Segundo Caderno

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2021-10-28T07:00:00.0000000Z

2021-10-28T07:00:00.0000000Z

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