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Cérebro da mosca pode trazer pistas sobre o nosso

Análise de milhares de neurônios e sinapses do inseto foi considerada um marco pelos cientistas e abre caminho para entender como funcionam estruturas mais complexas em órgãos de outros animais, incluindo o ser humano

EMILY ANTHES

Océrebro de uma mosca é do tamanho de uma semente de papoula, e é quase tão fácil de ser ignorado.

—A maioria das pessoas, eu acho, nem mesmo pensa na mosca como tendo um cérebro — disse o neurocientista do Campus de Pesquisa Janelia do Instituto Médico Howard Hughes, nos EUA, Vivek Jayaraman, que acrescenta: —No entanto, as moscas le vam uma vida muito rica.

As moscas são animais capazes de comportamentos sofisticados, incluindo navegar por diversas paisagens, brigar com rivais e realizar serenatas para parceiros em potencial. E seus cérebros, do tamanho de uma partícula, são extremamente complexos, com cerca de 100 mil neurônios e dezenas de milhões de conexões, ou sinapses, entre eles.

Desde 2014, cientistas, em colaboração com o Google, têm mapeado esses neurônios e sinapses em um esforço para criar um diagrama de fiação abrangente, ou o conectoma, do cérebro da mosca.

O trabalho é demorado e caro, mesmo com a ajuda de algoritmos de última geração. Mas os dados que eles divulgaram até agora são impressionantes em seus detalhes, compondo um atlas de dezenas de milhares de neurônios retorcidos em muitas áreas cruciais do cérebro do inseto.

Em um novo artigo publicado na revista científica eLife, os neurocientistas estão começando a mostrar o que podem fazer com essas descobertas. Ao analisar o conectoma de apenas uma pequena parte do cérebro da mosca — conhecido como complexo central, que tem um papel importante na navegação — Jayaraman e seus colegas identificaram dezenas de novos tipos de neurônios e localizaram circuitos neurais que parecem ajudar as moscas a seguirem seu caminho pelo mundo.

No final, o trabalho poderá ajudar a fornecer uma visão sobre como os cérebros de animais, incluindo o dos humanos, processam uma enxurrada de informações sensoriais e as traduzem em ações.

É também uma validação para o jovem campo da conectômica moderna, que foi construído com a promessa de que a construção de diagramas detalhados de fiação do cérebro traria dividendos científicos.

—É realmente extraordinário —disse o pesquisador sênior do Instituto Allen para Ciência do Cérebro, em Seattle, nos Estados Unidos, Clay Reid: — Acho que qualquer pessoa que olhar para o estudo dirá que a conectômica é de fato uma ferramenta de que precisamos na neurociência.

O único conectoma completo no reino animal já feito pertence à lombriga C. elegans. O biólogo pioneiro Sydney Brenner, que mais tarde ganharia o Prêmio Nobel, deu início ao projeto na década de 1960. Sua pequena equipe passou anos trabalhando nisso, usando canetas coloridas para desenhar os 302 neurônios à mão.

—Brenner percebeu que para entender o sistema nervoso era preciso conhecer sua estrutura. Eisso éverdade emtoda biologia, a estrutura é muito importante — disse Scott Emmons, o neurocientista e geneticista da Faculdade de Medicina Albert Einstein.

Brenner e seus colegas publicaram artigo com 340 páginas em 1986. Mas o campo da conectômica moderna não decolou até os anos 2000, quando os avanços tecnológicos permitiram mapear as conexões em cérebros maiores.

Quando o Campus de Pesquisa Janelia foi inaugurado em 2006, Gerald Rubin, seu diretor fundador, voltou sua atenção para a mosca:

— Elas têm o cérebro mais simples que realmente executa um comportamento interessante e complexo.

MICROSCÓPIO LIXA DE UNHA

Os pesquisadores cortaram o cérebro da mosca em placas e, em seguida, usaram uma técnica conhecida como microscopia eletrônica de varredura por feixe de íons focalizados para obter imagens de cada camada. O microscópio funcionava essencialmente como uma lixa de unha muito minúscula e precisa, tirando uma foto do tecido exposto e repetindo o processo até que não restasse mais nada.

A equipe então usou um software de visão computacional para juntar milhões de imagens resultantes do processo em um único volume tridimensional e enviar ao Google. Lá, algoritmos avançados de aprendizado de máquina identificaram cada neurônio individual e rastrearam seus ramos retorcidos.

No ano passado, os cientistas publicaram o conectoma para o que chamaram de “hemibrain”, uma grande parte central do cérebro da mosca, que inclui regiões e estruturas cruciais para o sono, aprendizagem e navegação.

O conectoma, que pode ser acessado gratuitamente online, inclui cerca de 25 mil neurônios e 20 milhões de sinapses, um número muito maior que o conectoma da lombriga C. elegans.

—É uma expansão dramática. Este é um passo tremendo em direção ao objetivo de descobrir como funciona a conectividade do cérebro —disse o neurocientista da Universidade Rockefeller, em Nova York, Cori Bargmann.

PROBLEMAS SEMELHANTES

Assim que o conectoma do “hemibrain” estava pronto, Jayaraman, que é um especialista sobre a neurociência da navegação da mosca, estava ansioso para mergulhar nos dados do complexo central.

A região do cérebro, que contém cerca de 3 mil neurônios e está presente em todos os insetos, ajuda as moscas a construir um modelo interno de sua relação espacial com o mundo e, em seguida, selecionar e executar comportamentos adequados às suas circunstâncias, como procurar comida quando estão com fome.

É claro que alguém poderia perguntar por que os circuitos cerebrais de uma mosca são importantes.

As moscas não são camundongos, nem chimpanzés ou humanos, mas seus cérebros realizam algumas das mesmas tarefas básicas. Compreender o circuito neural básico de um inseto pode fornecer pistas importantes de como cérebros de outros animais abordam problemas semelhantes, explicou o neurocientista da Universidade de Washington, em St. Louis, David Van Essen.

Criar conecto mas de cérebros maiores e mais complexos será um desafio enorme. O cérebro do rato, por exemplo, contém cerca de 70 milhões de neurônios, e o cérebro humano, impressionantes 86 bilhões.

“As moscas têm o cérebro mais simples que realmente executa um comportamento interessante e complexo”

Gerald Rubin, fundador do Campus de Pesquisa Janelia

“Este é um passo tremendo em direção ao objetivo de descobrir como funciona a conectividade do cérebro”

Cori Bargmann, neurocientista

Saúde

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2021-10-28T07:00:00.0000000Z

2021-10-28T07:00:00.0000000Z

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