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O jogo só acaba quando termina

ROBERTO LIVIANU Roberto Livianu, procurador de Justiça em São Paulo, é doutor em Direito pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e cronista

APEC da Vingança tirou o sono de 11 em cada dez promotores e procuradores do Brasil. Muito pior que o pesadelo da PEC 37 de 2013, que queria impedir o MP de abrir investigações criminais. Prato na mão na fila do Kilão ,adeputada Terezinha abre a agenda, e a refeição fica para trás porque cada conversa é crucial. E a intensidade não impede a gentileza, notada pela faxineira Firmina, que cuida da limpeza da Câmara, cumprimentada pela promotora Mariana, expressão da resiliência. Engata conversa em qualquer oportunidade, até mesmo num deslocamento de minutos entre o gabinete e a reunião na CCJ, em dois minutos no cafezinho ou no Salão Verde —isso pode fazer a diferença.

O celular de Carlito está nervoso. Líderes religiosos, celebridades, artistas, médicos, ativistas de todos os universos possíveis e imagináveis — do mundo funk da Zona Norte do Rio à galera do boi de Parintins; dos grafiteiros aos moradores de rua, o trabalho de articulação da sociedade contra a PEC 5 só funcionaria se fosse assim — no 220. No caso dele, no 2200.

As vivências atendendo o público ensinaram muito sobre as necessidades da comunidade. Carlito e Mariana se multiplicam — a areia desce na ampulheta, e a qualquer momento a PEC pode ser posta em votação, a critério do presidente da Câmara. Ele não precisa justificar. Simplesmente pauta quando quiser ou sentir que tem os votos necessários para aprovação. Já fora adiada por três vezes, e havia sinais fortes no sentido de que, naquela quinta,poderiairaplenário a décima versão do relatório. Chamava a atenção o fato de estarem unidos pela impunidade governo e oposição, que o criticava no dia a dia. Mariana e Carlito estão no Salão Verde conversando com dois deputados, quando se aproxima deles o segurança Ricardão e determina abruptamente que se retirem dali. Percebe-se que o rapaz não acha aquilo justo, mas são ordens expressas do presidente da Casa. Ele é obrigado a cumprir.

De nada adianta argumentar que o MP tem a missão constitucional de defesa da ordem jurídica e do regime democrático. De nada adianta constar na carteira funcional estar assegurado aos membros do MP expressamente o acesso a qualquer prédio público no território brasileiro. O presidente decidiu que não —ele é o poder ali.

Carlito consegue ligar para uma deputada, que vai ao encontro deles na chapelaria e, dando um braço a cada um, consegue minimizar a humilhação, mediante o compromisso de que os três iriam apenas tomar um cafezinho e, em dez minutos, a parlamentar e os membros do MP se retirariam daquele que deveria ser local para a representação democrática.

Horasdepois,jáacaminhodecasa,Carlito vai recebendo as notícias sobre a votação pelo zap e começa a pular no meio do aeroporto e a esmurrar o ar. Quem está por perto acha que ele surtou. A PEC foi rejeitada, seguida da declaração do presidente de que o jogo não havia terminado. Mas, além dos promotores e procuradores, Ricardão e Firmina e o povo celebram, felizes, a vitória da sociedade.

De nada adianta argumentar que o MP tem a missão constitucional de defesa da ordem jurídica e do regime democrático

Opinião

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2021-10-28T07:00:00.0000000Z

2021-10-28T07:00:00.0000000Z

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