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O horror da escravidão a partir de um capitão de navio negreiro

No romance ‘A visão das plantas’, a escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida experimenta uma perspectiva diferente de obras anteriores e consolida projeto literário ao revisitar feridas dos crimes cometidos em nome da colonização

LUCIANA ARAUJO MARQUES Especial para O GLOBO

Aepígrafe de “A visão das plantas”, de Djaimilia Pereira de Almeida, poderia ser tomada por sinopse. Afinal, seu enredo soa bastante fiel ao breve testemunho extraído de “Os pescadores” (1923), de Raul Brandão (1867-1930). Contudo, não está na superfície episódica a façanha literária desse pequeno romance lançado em 2019 e recém-chegado às prateleiras brasileiras, que tem como protagonista um capitão de navio negreiro aposentado.

“De uma vez com sacos de cal despejados no porão sufocara uma revolta de pretos, que ia buscar à costa da África para vender no Brasil. Outras coisas piores se diziam do capitão Celestino... Mas o que eu sei com exactidão a seu respeito é que para alporques de cravos não havia outro no mundo. [...] E acabou assim a vida mondando e podando, sem uma dúvida na consciência tranquila...”

FACÍNORA À VISTA

O que lemos nas memórias do escritor português, aqui recortadas a partir do longo excerto destacado por Djaimilia na epígrafe, não se trata de mero crédito de sua inspiração. Estão aí contidos o episódio-síntese da natureza brutal de Celestino e o registro de sua impunidade rodeada por flores nos anos derradeiros, eixos centrípetos do livro da escritora que, nascida em Luanda em 1982, cresceu nos arredores de Lisboa. Entretanto, fica evidente nas páginas de nossa contemporânea um desvio vertical, na medida em que retorna em profundidade ao outrora observado pela criança rememorada pelo adulto a vislumbrar parte da história de seu país encarnada na figura do velho.

Enquanto naquelas “linhas de saudades”, segundo as palavras do próprio Brandão, Celestino surge após a enumeração de outros personagens, com os quais o menino topa no caminho até o colégio levado pela mão, para logo desaparecer em meio ao impressionismo de paisagens afetivas e relatos de viagens, em “A visão das plantas”, o facínora nunca é perdido de vista. E as atrocidades cometidas, jamais retiradas do horizonte cerrado pela vegetação desenfreada como sinal de ruína do humano frente a desígnios inumanos.

A vida anterior do capitão, “misteriosa e feroz”, e aquela que lhe escapa com a proximidade da morte natural, vivenciada à espreita de seu reverenciado jardim, são prescrutadas a partir do ângulo de quem olha, com lirismo sombrio, para o interior de covas: o porão do navio; o Atlântico; a casa da infância herdada, para onde o ex-corsário retorna na velhice e cultiva com esmero um território sob constante ameaça de pragas, em tudo semelhante a ele mesmo. Se aos olhos das plantas os crimes praticados pelas mãos que lhes regam as raízes são indiferentes, como são para o próprio Celestino, porque no fim do mundo (ou no princípio de todo gesto colonizador), não há gente a ser poupada, também chama a atenção que um padre insista tanto para que o excorsário se confesse. A absolvição divina a seu dispor espanta na mesma medida da ausência de qualquer sinal de arrependimento ou de castigo dos céus ou dos homens. Em um dos pontos altos dessa novela de horror, na intimidade da casa malassombrada pelo vivo, jazigo de seu coração vegetal, os mortos são profanados pelo que sobrevive impune. Em seus delírios, os fantasmas das vítimas o aconchegam, lhe fazem companhia. A dimensão do inusitado com o qual o leitor se depara em “A visão das plantas” está sobretudo nas formas encontradas para tratar a naturalização da injustiça frente aos crimes cometidos em nome da colonização, sem simular um tribunal nunca ocorrido. Há que se atentar à série de recursos de linguagem a que a narrativa lança mão, o que nem sempre casa com a fluidez do texto, a exigir

releituras. Cito,

por exemplo, o uso recorrente da enumeração, a mimetizar um inventário ou uma catalogação constante. Celestino, embora incapaz de entender a própria letra, também faz anotações num caderno, arremedo de diário ou caderneta de bordo, onde lemos fragmentos de um cotidiano marcado pela presença de ratos e muito sangue, além das plantas. Ao mirar o algoz e todos aqueles que fecham os olhos para a barbárie, ao convertê-la em lenda para assustar criancinhas ou em passado morto e enterrado, revela a insistência de heras e ervas daninhas a se lastrear sobre territórios e vidas há tanto invadidos. “A visão das plantas” experimenta uma perspectiva diversa e adversa em relação ao conjunto autoral de Djaimilia Pereira de Almeida, sem em nada romper com a unidade de um projeto literário que vai se consolidando. Basta ler ou ter lido “Esse cabelo” (2015) e “Luanda, Lisboa, Paraíso” (2018), vencedor do Prêmio Oceanos 2019.

Luciana Araujo Marques é jornalista, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP) e doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp)

Segundo Caderno

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2021-05-08T07:00:00.0000000Z

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