Infoglobo

A DISPUTA PELA VERDADEIRA HISTÓRIA

AUMENTO DO NEGACIONISMO, potencializado pelas fake news, é foco de diversos estudos de especialistas, que analisam o fenômeno como fruto de estratégia de poder e crise da ciência

RUAN DE SOUSA GABRIEL rsgabriel@edglobo.com.br SÃO PAULO

Diferentemente do que imagina o senso comum, negacionismo não é só afirmar que fatos históricos, como o Holocausto ou a ditadura civil-militar no Brasil, não aconteceram, mas questioná-los de diversas formas e com diferentes objetivos. O termo vem do francês “négationnisme” e surgiu no contexto do Tribunal de Nuremberg, na Alemanha, para caracterizar discursos que negavam que o extermínio de judeus. Discursos estes que não se limitavam aos nazistas que sobreviveram à guerra, mas também eram defendidos por historiadores, como o francês Robert Faurisson (1929-2018), que contestou até a autenticidade dos diários de Anne Frank.

No último ano, diante da intensa disseminação de fake news e de declarações que desprezam a ferocidade e letalidade da Covid-19, descrita como “gripezinha” pelo presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, o negacionismo tem sido cada vez mais debatido pelos historiadores. O negacionismo pode negar a realidade ou se revestir de outras estratégias narrativas, como a legitimação e justificativa de determinados fatos históricos. Alguns negacionistas não negam os campos de concentração, mas afirmam que os judeus morreram de doenças e não nas câmaras de gás — explica Caroline Bauer, historiadora do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos

do Passado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LUPPA-UFRGS). Bauer entende o negacionismo como “estratégia de regimes genocidas”:

— Fez parte da própria estrutura da ditadura brasileira, que divulgava que os opositores haviam morrido por suicídio ou em confrontos, quando haviam sido assassinados.

Patrícia Valim, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diferencia o negacionista profissional do inocente. O profissional faz da disseminação de mentiras seu meio de vida, como Faurisson e o gaúcho Siegfried Ellwanger Castan (19282010), autor de livros que negavam o Holocausto e condenado pelo Supremo Tribunal Federal por incitação ao racismo. No Brasil, não há legislação específica para punir o negacionismo. Já o negacionista inocente seria o “tio do zap”, que contesta os crimes da ditadura porque não conhece ninguém que tenha sido torturado. Valim ainda explica que o negacionismo é uma “governabilidade minuciosamente elaborada”, ou seja, uma condição para o exercício de determinadas formas de poder, e que muitas vezes é reflexo de uma “crise da ciência”. —A ciência entra em crise quando não é representativa e não dá conta da diversidade populacional. Setores que não se veem representados na comunidade científica buscam respostas em outros lugares — afirma Valim que, juntamente com Alexandre Avelar, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), prepara um dossiê sobre negacionismo para a “Revista Brasileira de História”. — Ciência é construção de consensos, o que também depende de representatividade. Rejeitar a centralidade da luta antirracista, por exemplo, é negacionismo ético.

VISÕES DIFERENTES

Diferentes interpretações históricas podem ser igualmente válidas. Inclusive, nas últimas décadas, cresceu a demanda por historiografias menos eurocêntricas. Interpretações errôneas podem resultar de equívocos na análise das fontes ou falsificação deliberada, estratégia usada pelo negacionismo e pelas fake news, que empreendem revisões ideológicas do passado. — Até a mentira pode ser interpretada por historiadores.

A pluralidade e a refutação de diferentes interpretações é parte do debate. Já dizia o filósofo Karl Popper que uma sentença irrefutável não é científica — lembra o historiador italiano Carlo

Ginzburg (veja entrevista completa na página 2).

O que separa o erro da mentira, mostram os pesquisadores, é a intenção. O mentiroso, seja ele um negacionista profissional ou um disseminador de fake news, geralmente conhece a verdade. Negacionistas dizem propagar não uma mera interpretação histórica, mas a verdadeira História. Mas existe verdade histórica? Robert Darnton, um dos mais influentes historiadores em atividade, autor de livros como “Censores em ação”, afirma que sim, embora seja uma “verdade com

V minúsculo”, que não se confunde com a opinião ou a propaganda ideológica. —Como profissionais, desenvolvemos regras para interpretar o passado e nos aproximarmos de uma verdade histórica. Vamos às fontes e mostramos como são construídas as evidências — diz Darnton, que prepara um livro sobre como informações falsas atiçaram a Revolução Francesa. Segundo Fernando Nicolazzi, também pesquisador do LUPPA-UFRGS, revisões ideológicas do passado aparecem, por exemplo, em obras que exaltam a monarquia e minimizam a escravidão.

— Usos ideológicos do passado para fins políticos se caracterizam pela higienização da História — diz. —A escravidão vira só uma mancha moral, um mero detalhe resolvido pela Princesa Isabel, e não como um processo estruturante da sociedade brasileira. O revisionismo ideológico vende uma história linear e desprovida de conflitos.

O historiador argentino Federico Finchelstein afirma que a mitologização do passado é típica de políticos autoritários que mentem até que a realidade se altere.

— Por isso é importante defender a liberdade de expressão, o jornalismo independente e a história científica. Muitos vão continuar acreditando em mentiras, mas eles não são a maioria —afirma ele.

Oitaliano Carlo Ginzburg decidiu tentar a vida de historiador depois de ler um ensaio “Réflexions d’un historien sur les fausses nouvelles de la guerre” (Reflexões de um historiador sobre as notícias falsas da guerra”), publicado pelo francês Marc Bloch, um dos fundadores da Escola dos Annales, movimento historiográfico de grande influência no século XX. Bloch analisou as fake news que circulavam nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e convenceu Ginzburg de que a mentira também merecia a atenção do historiador. Ginzburg revolucionou os estudos historiográficos ao popularizar, a partir dos anos 1980, a “micro-história”, que privilegia não a trajetória de grandes homens ou nações, mas abordam o passado por meio de figuras anônimas e fatos cotidianos, aprofundandose em casos particulares para iluminar estruturas sociais mais amplas. Num de seus livros mais famosos, “O queijo e os vermes”, ele reconstitui a vida de um moleiro da região de Veneza acusado de heresia pela Inquisição.

O autor italiano também arrumou briga com colegas convencidos por teorias pósmodernas de que não havia limites claros entre fato e ficção e que a historiografia, mais do que a busca da verdade, era um exercício de retórica. Em entrevista ao GLOBO, por Skype, o historiador afirma que a atitude pós-moderna nos tornou mais fracos diante das fake news e que interpretações que relativizam o passado autoritário não são debatidas no campo da historiografia, mas da política.

A mentira é objeto de estudo do historiador?

A mentira é tema de duas obras-primas historiográficas do século XX: “Os reis taumaturgos”, de Marc Bloch, e “O grande medo de 1789”, de George Lefebvre. Ambas mostram as consequências políticas da dissedade minação de informações falsas, como fake news se tornam “fatos”. O livro de Lefebvre fala de boatos que se espalharam pela França, segundo os quais os aristocratas pretendiam se vingar dos camponeses por causa da Revolução. O livro de Bloch é um ensaio sobre as raízes do poder monárquico na Europa. Na Idade Média, difundiu-se a lenda de que os reis curavam doentes ao tocá-los. Essa lenda reforçou o poder real na França e na Inglaterra, e Bloch revela a política por trás dos boatos. Ele também escreveu um livro sobre notícias falsas na Primeira Guerra Mundial que me convenceu a tentar ser historiador.

O senhor é conhecido por seus embates com historiadores pós-modernos que afirmam a impossibilidade de se traçar um limite entre fato e ficção. Enxerga alguma relação entre a atitude pós-moderna e o fenômeno das fake news?

Seria ridículo culpar o pós-modernismo pelas fake news, mas ele tornou as pessoas mais fracas diante delas. A intenção podia ser boa, mas o resultado político é catastrófico. Lutamos contra as fake news provando que são falsificações. Se a noção de falsificação não faz mais sentido e não distinguimos mais fato e ficção, estamos perdidos.

Existe verdade histórica?

Sem dúvida! A noção de fato é complicada, porque pode se referir a eventos reais ou a documentos cujo conteúdo é fictício. Quando eu trabalhava com os arquivos da Inquisição, minha tarefa era checar não a veracidade, mas o valor simbólico de declarações de camponeses que afirmavam, por exemplo, poder voar e se transformar em animais. Não podemos cair no positivismo ingênuo que diz que há fatos e ponto. Até a mentira pode ser interpretada por historiadores. A pluralie a refutação de diferentes interpretações é parte do debate. Já dizia o filósofo Karl Popper que uma sentença irrefutável não é científica.

O negacionismo e a disseminação de informações falsas são constantes na História ou dependem de determinadas condições para surgir?

A palavra “negacionismo” apareceu para se referir àqueles que negam o Holocausto e agora vem sendo usada para se referir à negação da gravidade da pandemia e do coronavírus. É um negacionismo deliberado, que tem consequências terríveis. Os usos políticos da mentira são notícia velha. Novas são as tecnologias que permitem disseminação de fake news tão rapidamente e para tantas pessoas, o que era impossível quando as notícias dependiam da comunicação oral.

Em “O fio e os rastros”, o senhor discute o verdadeiro, o falso e o fictício. Qual a diferença entre o falso e o fictício?

A palavra ficção vem do latim, fictio, que se referia ao ato do oleiro modelar a argila e depois foi usada para nomear um gênero literário. Na origem, ficção tem a ver com manipulação. Mas ficção não é falsidade. Robinson Crusoé não é mentira, é ficção. Já as fake news são ficções que se apresentam como verdadeiras. Logo, são falsas. Os historiadores podem trabalhar com a mentira e a ficção para extrair delas algo que está além da intenção dos autores. Walter Benjamin disse para lermos a história a contrapelo. Para mim, isso quer dizer analisar a evidência históricas contra a intenção dos que a produziram.

No mesmo livro, o senhor afirma que os historiadores têm como ofício “destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo”. Esse ofício se tornou mais urgente desde a publicação da obra, em 2005?

Talvez, mas não por boas razões. Ainda hoje, estou de acordo com essa frase, porque ela deixa claro que o trabalho técnico do historiador tem a ver com nossa vida cotidiana. O verdadeiro, o falso e o fictício constituem nosso mundo.

“Ficção tem a ver com manipulação, mas não é falsidade. Já as fake news são ficções que se apresentam como verdadeiras. Logo, são falsas”

“Não podemos cair no positivismo ingênuo que diz que há fatos e ponto. Até a mentira pode ser interpretada por

_ historiadores” Carlo Ginzburg ,

historiador

Segundo Caderno

pt-br

2021-05-08T07:00:00.0000000Z

2021-05-08T07:00:00.0000000Z

https://infoglobo.pressreader.com/article/282346862683171

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.