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Controvérsia sobre ‘tratamento precoce’ só existe na política

Tema central dos debates, tratamento precoce foi apresentado ao espectador da comissão com argumentos pró e contra aparentemente equivalentes. Na realidade, remédios sucumbiram ao rigor de pesquisas ‘padrão ouro’

MIGUEL LAGO* opais@oglobo.com.br

Ecomeçou a CPI da Covid. Na terça-feira, o senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) abriu sua fala dirigindo-se ao ex-deputado federal e ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS): “Infelizmente, é uma CPI política”. O parlamentar sugeria que a comissão estaria muito mais baseada nas divergências políticas do que em fatos concretos. Os debates deixam claro: as falsas equivalências criadas pela política podem se sobrepor às controvérsias científicas. Praticamente um terço dos membros da comissão dirigiu ao ex-ministro argumentos em defesa do chamado “tratamento precoce”. Os senadores governistas Eduardo Girão (Podemos-CE), Jorginho Mello (PL-SC), Ciro Nogueira (PP-PI), Marcos Rogério (DEM-RO) e Heinze foram todos enfáticos nessa defesa —ora recorrendo a experiências pessoais, ora a relatos de médicos, ou ainda a estudos pouco seguros. Para o espectador da CPI, argumentos pró e contra o tratamento precoce são apresentados de forma relativamente bem distribuída, dando a impressão de que existe uma equivalência entre as posições. Na ciência, no entanto, essa controvérsia é infinitamente menor e o assunto muito mais consensual. Em um ano de intensa produção acadêmica, até agora nenhuma pesquisa “padrão ouro” provou que existam remédios que previnem a infecção ou o desenvolvimento da doença causada pela SARSCoV-2. Um painel do periódico BMJ com meta-análise de 196 estudos clínicos, com mais de 70 mil pacientes, conclui que hidroxicloroquina e ivermectina não parecem afetar positivamente os desfechos de saúde. Comprovar a eficácia de um medicamento requer métodos científicos rigorosos, como: a) grupos de controle —grupos de voluntários recebem o medicamento e outro esquema terapêutico, alternadamente; b) randomização — voluntários são incluídos nos grupos de forma aleatória; c) e o “duplo-cego” —voluntários e cientistas não têm ideia de quem recebeu o quê. Esses procedimentos são importantes para evitar vieses, garantir relevância estatística e descartar o efeito placebo (quando a pessoa se sente melhor por acreditar no tratamento). Por fim, os esforços e resultados da pesquisa são publicados em um jornal científico, depois de revistos por especialistas independentes. Nenhum estudo que chegou a mostrar algum benefício do chamado “kit covid” passou por todos esses filtros de qualidade. São na sua maioria estudos observacionais, sem relevância estatística. Uma busca em revisões sistemáticas nos periódicos científicos mais prestigiosos do mundo (os de categoria A1 ou A2) não revela um sequer capaz de apontar benefícios. E é cada vez maior o número de publicações, nesses mesmos periódicos, que alertam para a possibilidade de agravamento dos efeitos da doença em pacientes tratados com hidroxicloroquina. Foi guiada por essa robustez científica que a OMS publicou, em 1º de março deste ano, uma recomendação contrária ao uso de cloroquina e hidroxicloroquina.

A ciência trata suas controvérsias a partir de evidências. A política as conduz a partir de seus antagonismos, e com isso promove falsas equivalências em temas já resolvidos previamente pela ciência, apenas para alimentar os conflitos do jogo político. O senador Heinze está, portanto, coberto de razão. Estão politizando a CPI, estão politizando a ciência. Nessa primeira semana, quem protagonizou esse processo, insistindo na defesa do “tratamento precoce”, foi exatamente o grupo de senadores governistas do qual Heinze faz parte.

(*) Miguel Lago é diretor executivo do IEPS e professor adjunto da School of International Public Affairs da Universidade de Columbia (EUA)

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2021-05-08T07:00:00.0000000Z

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