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O irritante acerto de Teich

EURÍPEDES ALCÂNTARA blogs.oglobo.globo.com/opiniao euripe@gmail.com

Os políticos exageram e mentem. Por pura sobrevivência. Para eles, a linguagem é uma moeda falsa, negociada tão naturalmente que esconde o abismo entre as palavras e o mundo real. Desde as primeiras publicações especializadas no século XVII, os cientistas, também por sobrevivência, estabeleceram com a linguagem uma relação bem mais fidedigna. O depoimento dado à CPI da Covid pelo médico Nelson Teich, na quarta-feira passada, foi um confronto fascinante entre essas duas maneiras tão contrastantes do uso da capacidade humana para a comunicação oral.

O oncologista Teich foi ministro da Saúde do atual governo por apenas 29 dias, entre 17 de abril e 15 de maio de 2020. Pediu demissão, conforme explicou aos deputados e senadores que o inquiriram, por discordar do posicionamento intransigente do governo com relação à recomendação da cloroquina como remédio para tratar a Covid-19 em seus estágios iniciais. Teich lembrou que, numa das reuniões de que participou, discutiu-se a cloroquina no governo com amparo de uma decisão favorável do Conselho Federal de Medicina (CFM). Teich disse que discordava da prescrição da hidroxicloroquina e da cloroquina para tratar a Covid-19 em qualquer estágio, mesmo antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmar, “em 5 de junho, que essas drogas não deveriam ser recomendadas”. A agência Lupa corrigiu o ex-ministro, lembrando que a OMS publicou uma recomendação contrária ao uso dessas drogas somente no dia 1º de março de 2021 — há menos de dois meses. Até recentemente, portanto, a OMS ficou em cima do muro a respeito da hidroxicloroquina e da cloroquina. O CFM insiste que não há consenso sobre o uso dessas drogas e se recusa a rever o aval dado a elas em abril do ano passado. CFM e OMS são hierarquias corporativas e não propriamente instituições científicas. Teich mostrou ter razões médicas para discordar dos pareceres oscilantes dessas duas burocracias.

O senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, tentou arrancar de Teich a afirmação de ser crime equivalente a dar “chumbinho”, veneno contra ratos, um médico ministrar cloroquina nebulizada, pois uma paciente havia morridodepoisdesubmetidaaessaterapiaemseuestado. Teich disse que não tinha os detalhes do caso nem conhecimento jurídico para afirmar se houve crime, mas adiantou que qualquer uso da cloroquina para tratar pacientes com Covid-19 era “errado” e demonstrava “incompetência do médico”. O senador Luis Carlos Heinze(PP-RS)buscouemvãosuaconcordânciasobre serem provas inquestionáveis da eficiência da cloroquina uma série de planilhas exibidas noplenáriocomdadossobredoentesrecuperados. Teich disse que, antes de dar sua opinião, precisava examinar as evidências e analisar a metodologia utilizada.

O ex-ministro irritou quem esperava saírem de sua boca manchetes condenatórias prontas de alta estridência contra o governo ou críticas demolidoras a quem condena a cloroquina. Os parlamentares, como é do ofício, falaram com a ênfase de quem acha estar certo. O oncologista optou por afirmar somente aquilo que tinha certeza não estar errado. Nesse detalhe, reside a imensa diferença do uso da linguagem entre esses dois grupos de profissionais, os políticos e os cientistas. Evitem me interpretar mal, concluindo que a ciência está sempre certa, e a política é uma atividade espúria por natureza. Longe disso. Minha análise se detém apenas na linguagem dessas duas atividades humanas vitais. A retórica política em seus momentos condoreiros tem a mesma força que os fatos. Infelizmente, esse dom eclode tanto para o bem quanto para o mal. A linguagem científica é mais transparente. Como os mapas, suas palavras não refletem o mundo em todos os detalhes, mas foram colocadas no papel, ou se preferirem, nas telas, para orientar, demonstrar e até ser desafiadas por novas realidades —e nunca apenas para convencer.

Opinião

pt-br

2021-05-08T07:00:00.0000000Z

2021-05-08T07:00:00.0000000Z

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