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IMAGINAÇÃO E AMBIÇÃO A SERVIÇO DA LITERATURA

AUTORA DE TRILOGIA SOBRE THOMAS CROMWELL, BRAÇO DIREITO DE HENRIQUE VIII, BRITÂNICA FOI A PRIMEIRA MULHER A GANHAR DUAS VEZES O MAN BOOKER PRIZE

RUAN DE SOUSA GABRIEL rsgabriel@edglobo.com.br SÃO PAULO

Aescritora britânica Hilary Mantel tinha pelo menos uma característica em comum com seu personagem mais famoso, Thomas Cromwell, protagonista da trilogia “Wolf Hall”: a ambição. Filho de um ferreiro bêbado sem eira nem beira, Cromwell se tornou o conselheiro mais próximo de Henrique VIII e ajudou o monarca a se divorciar de Catarina de Aragão, a casarse com Ana Bolena (e com outras) e a reformar a Igreja da Inglaterra. Nascida em Derbyshire, no interior da Inglaterra, em 1952, Mantel foi educada numa escola católica, onde Cromwell era apresentado como um homem “maquiavélico” e que “tinha fome de dinheiro”. Estudou Direito na London School of Economics e na Universidade Sheffield e chegou a trabalhar como assistente social em um hospital geriátrico antes de se casar, em 1972, com o geólogo Gerald McEwan. Juntamente com ele, viveu em Botsuana e na Arábia Saudita, antes de retornar ao Reino Unido.

RECONHECIMENTO

Aos 27 anos, quando já pensava em escrever “A sombra da guilhotina”, ficção de mais de 700 páginas sobre a Revolução Francesa, ouviu de um psiquiatra que seus problemas de saúde eram causados por excesso de ambição. A doença de Mantel, porém, era uma endometriose que demorou a ser diagnosticada, condenava-a a dores terríveis e a impediu de ter filhos.

— Cromwell e eu chegamos muito longe, se levarmos em conta onde começamos. Gosto de escrever sobre pessoas ambiciosas porque sei o que as move. Cromwell confiava nos seus sentidos, no seu corpo sólido. Eu vivo dentro da minha cabeça e às vezes me esqueço de manter os pés no chão. Portanto, somos opostos em alguns aspectos, e isso dá à minha imaginação de escritora um grande desafio a cumprir — disse em entrevista ao GLOBO no ano passado. Mantel foi a primeira mulher a ganhar duas vezes o Man Booker Prize (desde 2019, ela dividia o pódio com Margaret Atwood, de “O conto da aia”). Venceu pela primeira vez em 2009 com “Wolf Hall”, romance que inspirou peças de teatro e uma série da BBC na qual Bolena é interpretada por Claire Foy, a rainha Elizabeth II da primeira fase de “The Crown”.

Em 2012, repetiu o feito com “Tragam os corpos”, no qual o foco recai sobre Bolena. O derradeiro volume da trilogia, “O espelho e a luz” (2020), que narra os últimas dias de Cromwell, foi indicado ao prêmio, mas não ganhou. A trilogia foi traduzida para 41 línguas e vendeu mais de cinco milhões de cópias pelo mundo (13 mil no Brasil, onde é publicada pela Todavia). Após concluir a saga de Cromwell, ela afirmou que ainda não tinha outro romance histórico em vista. E pediu às pessoas que parassem de lhe enviar sugestões. “É ótimo que as pessoas tenham apetite por ficção histórica, mas, dado o ritmo em que trabalho, eu gostaria de viver um pouco antes de que seja tarde demais”, disse em 2020, num festival literário em Edimburgo, na Escócia. Ao todo, Mantei publicou 17 livros, como “A sombra da guilhotina” e “O assassinato de Margaret Thatcher”, no qual narra o plano (fictício, obviamente) de um republicano irlandês para matar a primeira-ministra que empreendeu uma revolução conservadora no Reino Unido dos anos 1980. Escrito em 1983, o conto causou escândalo, e partidários de Thatcher exigiram que a escritora fosse investigada pela polícia. Em 2013, Mantel se encrencou de novo com o poder. Foi duramente criticada por chamar a então Duquesa de Cambridge (atual Princesa de Gales), Kate Middleton, de “manequim de vitrine” em uma palestra no Museu Britânico. A escritora discutia a imagem pública dos membros da realeza. Apesar da controvérsia, Mantel disse que sua fala havia sido simpática à realeza e que não via razões para se desculpar. Durante sua entrevista ao GLOBO, ela comentou o episódio: —Eu falei de Kate Middleton numa palestra complexa, na qual eu considerei as imagens públicas de Henrique VIII, Ana Bolena e Maria Antonieta, entre outros personagens da realeza. Também falei de Diana e de como sua imagem pública escapou dos limites prescritos pela família real, enquanto a persona de Kate era rigidamente controlada, como se ela tivesse sido fabricada especificamente para esse trabalho. Ao final da palestra, pedi que a imprensa se lembrasse de que ela era uma jovem, um ser vulnerável, e implorei que não a atacassem como fizeram com Diana.

O UNIVERSO

No início do mês, o jornal britânico Financial Times perguntou a Mantel se ela acreditava na vida após a morte. Ela respondeu que sim, mas acrescentou que era incapaz de imaginar o além. “Entretanto, o universo não se limita ao que eu posso imaginar”, disse. A escritora faleceu na quinta-feira, aos 70 anos, num hospital em Exeter, na Inglaterra, onde foi internada após sofrer um derrame enquanto trabalhava.

Segundo Caderno

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2022-09-24T07:00:00.0000000Z

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