Bookmark

Profile - nickname29654695

Verissimo encara a nova era da vida privada

RI­CAR­DO JAEGER/11-4-2019

Há anos Luis Fernando Verissimo trabalha dentro de sua “toca”, como define, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Portanto, home office não é lá uma novidade para o escritor, que passa a quarentena ao lado da mulher, Lucia, e do filho, Pedro. A mudança, de partir o coração, tem sido ficar longe da neta Lucinda (“só podemos trocar abanos tristes”). Xodó do avô, a menina completa 12 anos em abril, provavelmente ainda no isolamento.

A melancolia, o autor de 83 anos espanta arrumando suas estantes de livros e discos. Alguns fatos, no entanto, têm sido difíceis de digerir. Caso do recente pronunciamento de Jair Bolsonaro (na última terça-feira), que defendeu a volta da normalidade e o recolhimento apenas dos idosos.

— Durante toda a fala do presidente, eu só conseguia pensar uma coisa: emigrar pra onde, meu Deus? — conta o mestre do humor sucinto, que terá uma antologia de crônicas lançada pela editora Objetiva assim que o coronavírus permitir.

Enquanto não criamos outro mundo, o autor de “Comédias da vida privada”, que se define como “antissocial com muitos amigos”, reflete sobre o comportamento humano no recolhimento forçado. Que ele, aliás, cumpre direitinho e não corre o risco de ser multado pela prefeitura de sua cidade, que ameaçou taxar maiores de 60 anos flagrados nas ruas.

Como o senhor está encarando a quarentena?

Fora cinemas e restaurantes, que frequentávamos regularmente, nossa rotina não mudou tanto. E eu sempre fui muito caseiro.Cha toé a separação da família. Nosso filho Pedro está conosco, com o resto só falamos pelo telefone.

Do que mais tem sentido falta no dia a dia?

Da nossa neta Lucinda. Ela mora perto, mas só podemos trocar abanos tristes.

Aos 83 anos, o senhor pertence ao grupo de risco. Teve que adotar cuidados especiais?

Sou cardíaco, diabético e velho. O vírus que me pegar vai ganhar uma Tríplice Corona.

O seu trabalho de escritor já é solitário, mas mudou algo em tempos de recolhimento coletivo? Como conciliar “home” com “office”?

Há anos que eu trabalho em casa, numa “toca” à prova de distrações. Nesse sentido, a rotina também não mudou. No meu caso, a “home” e o “office” são a mesma coisa. Ou a “home” é o “office” com cozinha e cama.

O momento inspira um novo livro ou projeto?

Essa peste não inspira nada, só a escrever incessantemente sobre ela (Verissimo tem escrito artigos no GLOBO sobre o assunto). Não há como ser criativo tratando de um assunto que preferiríamos esquecer, mas não vai embora. O coronavírus nos tornou repetitivos e burros.

Tem se dedicado a algo que antes não tinha tempo ?

Estou tentando arrumar meus livros e discos, coisa que não consegui fazer nem quando tinha poucos livros e discos.

O que está lendo?

Entre os livros que comecei a organizar descobri uma revista literária inglesa, que eu nem sabia que tinha, com o roteiro completo do Tom Stoppard para um filme sobre Galileu que nunca foi feito. É claro que interrompi a organização e estou lendo o roteiro.

Com o confinamento, muitas pessoas estão indicando livros aos amigos, lendo mais. Isso pode ter um efeito positivo? Acha que podemos sair melhores dessa?

Acho que, se é possível imaginar um final feliz para este pesadelo, será nosso reencontro com a família, com amigo e com esta coisa maravilhosa cujo valor só agora reconhecemos, a normalidade.

Em algum livro ou distopia, viu cenário parecido com este que a gente está vivendo?

Da antiguidade nos vêm histórias de pestes arrasadoras sem nome, atribuídas à maldade do Diabo ou ao desprazer de Deus. As causas do flagelo eram desconhecidas. A própria descoberta de micróbios é relativamente recente. As pestes passaram a ter culpados, mas não cura, ou não cura completa, e continuam a ameaçar a Humanidade. Agora a ciência sabe tudo sobre epidemias e pandemias, mas não o bastante para impedi-las completamente.

Já viveu momentos piores? Quais?

As bombas atômicas lançadas no Japão inauguraram um mundo em que a capacidade para o terror é latente e sem limites. Nada comparável a pandemias assassinas, a não ser pelo fato de que um é um terror humano, deliberado, e o outro é um terror sem forma ou consciência.

O senhor escreveu “Comédias da vida privada”, e nunca tivemos tanta vida privada como nestes tempos de quarentena. Que cenas consegue imaginar nas casas?

São tempos nada engraçados e pouco poéticos. O que não significa que não tenha gente fazendo humor para esquecer a dor. Gostei da previsão segundo a qual, depois de algumas semanas trancadas em casa com as crianças para escapar do coronavírus, as mães descobrirão uma vacina.

Casamentos sobreviverão?

Sei de casais que estão se conhecendo com o convívio forçado, começando pelo básico: “Como é mesmo seu nome?”.

“Sei de casais que estão se conhecendo com o convívio forçado, começando pelo básico: ‘Como é mesmo seu nome?’”

O que achou do último pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro? Como lidar com as confusões deste governo?

Durante toda a fala do presidente, eu só conseguia pensar uma coisa: emigrar pra onde, meu Deus?